"Vamos fazer algumas considerações no
sentido de mostrar que tipos de desafio pode a inteligência encontrar já na simples
contemplação da natureza. Se não se é capaz de perceber isto de imediato, apesar de
estarmos mergulhados na natureza o tempo todo, é apenas porque estamos habitualmente
preocupados com insignificantes problemas do dia-a-dia que desviam toda a atenção de
nossa inteligência do espetáculo extraordinário que nos circunda.
Para tentarmos compreender o alcance desta afirmação, vamos considerar o
ato mais trivial de qualquer estudante, o ato de vir à escola. Consideremos, ademais, um
estudante habitualmente preocupado, um estudante de escola noturna.
Antes de vir à escola, para retemperarmos nossas forças e não sentir o
incômodo de assistir à aula com fome, jantamos em nossas casas.Este simples ato já é por
si um verdadeiro espetáculo.
Para tomarmos o alimento, a natureza teve que elaborar um sistema
digestivo bastante complexo para ser capaz de digerir precisamente aqueles mesmos
alimentos que ela própria, por outro lado, oferece a todos abundantemente.
Recolher estes alimentos esparsos pelo mundo para produzir uma simples
janta seria uma tarefa penosíssima. Mas tudo isto, naquele momento, já tinha sido
resolvido. Centenas de pessoas haviam estudado agricultura, haviam plantado nos lugares
mais diversos cada um dos alimentos que iriam ser utilizados em nossa janta, outra
multidão os colheu, centenas de homens os transportaram, outros os conservaram, e outros,
finalmente, se especializaram em saber distribuí-los e vendê-los, deixando-os localizados
em lugares de fácil acesso para que nós os adquiríssemos.
Assim, naquele momento, um mundo imenso de pessoas na verdade estava
se preocupando conosco, e a própria natureza também, que sabiamente preparava as chuvas
para a lavoura e fornecia ao nosso corpo as enzimas necessárias à digestão justamente
daqueles alimentos que ela própria produzia.
Nós, porém, ali sentados, não prestamos atenção a nada disso. Só
queríamos sair correndo para não chegar atrasados à escola.
Quando saímos de casa, porém, outro espetáculo não menos fantástico
estava preparado.
Alguém tinha construído um elevador para nosso uso, e o tinha instalado
exatamente no lugar onde era necessário para nosso pronto e imediato transporte. Para que
o elevador estivesse ali, quantas pessoas não tinham trabalhado! Quanto carvão não teve
que ser usado para produzir seu aço, quanta madeira não teve que ser plantada para
construir suas portas, quantos operários e engenheiros não reelaboraram este aço e esta
madeira para transformá-la em um elevador; quantos outros operários e engenheiros não
tiveram que prever na planta do edifício todo o trabalho dos colegas que fabricavam o
elevador. Mas depois, alguém continuava bombeando ininterruptamente energia elétrica de
muito longe para que ele funcionasse com apenas um toque de nosso dedo; e para que este
alguém pudesse fazer isto, milhares de outros homens tiveram que represar um rio e criar
um lago artificial, para fazer o que, ademais, tiveram antes que criar uma cidade operária
nas proximidades do campo de obras da represa!
A rua, ademais, estava calçada. Outras pessoas, sabe-se lá quantas, tinham
se preocupado com isto também. A rua estava calçada, e estava também asfaltada, para
fazer com que um ônibus pudesse trafegar para nossa comodidade. Sem que o pedíssemos,
não apenas um ônibus, mas os mais diversos ônibus passavam regularmente à nossa
disposição para nos levar não a um só lugar, mas a qualquer lugar que quiséssemos. Para
isto milhares de pessoas tiveram que estudar mecânica, projetar os ônibus, construir os
ônibus, vender os ônibus, fazer a manutenção dos ônibus, dirigir os ônibus, explorar
petróleo, refinar petróleo, transportar gasolina, educar motoristas, educar o trânsito,
sinalizar o trânsito, e não só tinham feito tudo isso como o continuavam fazendo
incessantemente para que pudéssemos tomar o ônibus naquele momento ou a qualquer
momento.
Naquele momento o Sol se punha. O Sol também fazia parte do espetáculo.
Fazia séculos que o Sol brilhava todos os dias, e por causa disso é que podíamos enxergar
todas as coisas, mas o que é incrível, porém, é que nós não percebemos ou pensamos nisto
um só momento.
Estávamos preocupados, como sempre, com um insignificante problema
pessoal, infinitamente menor do que tudo isso, teoricamente muito menos capaz de chamar
a atenção de qualquer ser inteligente por mais obtuso que fosse, mas que na verdade era
exatamente o que estava conseguindo tirar toda a nossa atenção daquele espetáculo
fantástico: o temor de um atraso pessoal de alguns minutos.
Como é possível que uma coisa tão minúscula e tão insignificante impeça
para a maioria das pessoas a percepção de uma coisa destas? Pois se é compreensível que
todos tenham o seu momento patológico na vida, o fato é que, quando lecionamos e
falamos destas coisas em salas de aula onde há alunos se preparando para o Magistério,
vários dos quais contando com mais de trinta anos de idade, percebemos que era, na
verdade, a primeira vez em todas as suas vidas que se davam conta do espetáculo de que
falava Pitágoras.
Mas, chegando à escola, não paramos para perceber também que não
estávamos chegando sozinhos a esta nobre instituição. Para que pudéssemos aprender
alguma coisa, todo este aparato fenomenal que nos permitiu chegar à escola foi igualmente
mobilizado para trazer dos lugares mais diversos dezenas ou centenas de outras pessoas
para fazerem funcionar a escola normalmente enquanto pudéssemos estudar
tranqüilamente. O nosso pequeno objetivo de nos dirigirmos à escola assim encontrava
resposta em um aparato de escala mundial, mas nem nós, nem nenhum dos funcionários da
escola pensavam nisto. Nós estávamos preocupados com o atraso; os funcionários com o
salário que iam receber no fim do mês.
Como nós não observávamos o que acontecia à nossa volta, subimos as
escadas correndo. Encontramos então não apenas um corpo de funcionários, mas também
um corpo de professores que estavam sendo preparados desde a sua infância, recrutados
das mais diversas cidades e educados por milhares de outros professores para que
pudessem acumular um vasto conhecimento e tudo isto, enfim, para dar uma aula de 50
minutos às 20:00 horas.
Como é possível que um tão vasto complexo de forças naturais, das quais
esta discussão é apenas uma insignificante fração, pudesse estar tão adequadamente
ajustada para um objetivo tão pequeno? E que fêz aquele aluno em toda a sua vida para
merecer semelhante coisa em troca? Como se não bastasse, fazia mais de trinta anos que
ele nem sequer se dava conta de tudo isto, e iria passar mais outros quarenta e morrer
assim, reclamando da imensidão de seus problemas, se não despertasse, só por alguns
minutos, apenas durante aquela aula.
Quem não é capaz de entrever a admirável beleza que existe por detrás de tudo isto, e o inexplicável sono em que vivemos no nosso quotidiano?"
-A Educação Segundo a Filosofia Perene