Followers

quinta-feira, 14 de junho de 2012

A linguagem como reflexo do imaginário popular





 

"Há uma coisa que me preocupa, e já o disse muitas vezes. Que, enquanto o vocabulário de uma área particular, de um campo profissional técnico, de um ambiente específico, na agricultura, por exemplo, ou na pecuária — enquanto esses vocabulários específicos possuem uma riqueza enorme, tudo o que um homem pode sentir por outra pessoa resume-se — em todas as línguas que conheço — a meia dúzia de palavras. Algumas positivas, como "amizade", "amor", "ternura", "simpatia", "carinho", e outras tantas negativas. Parece-me muito restrito. Eu tenho quatro filhos, já adultos, e os amo de quatro maneiras diferentes. Há uma variedade imensa do amor, e a língua não reflete essa variedade. É uma limitação esquisita. Talvez devida a uma certa desatenção pelos sentimentos, pelos conteúdos anímicos, em contraste com a refinada atenção dedicada às técnicas da agricultura, da medicina... E às mil maneiras de dar um chute numa bola! E isso porque há um interesse especial. Muitas pessoas gostam de futebol e precisam distinguir os diferentes matizes dessa atividade. E, em contraste, o que uma pessoa sente por outra — e é algo mais difícil, sem dúvida — não desperta tanto interesse. Eu fico muito perplexo com este fato."
Julián Marías (filósofo espanhol) em entrevista a Jean Lauand et al., 
[http://www.hottopos.com/videtur8/entrevista.htm]



Ao ler algumas notas proferidas no Seminário Internacional "Os Pecados Capitais na Idade Média" [http://www.pecapi.com.br/], de Setembro de 2004, me deparei com uma questão interessante.


O seminarista discorria sobre o conceito da acídia na visão de Sto. Tomás de Aquino. Termo pouco utilizado, mais comumente entendido dentro do conceito de preguiça (como pecado capital); mas seu significado vai muito além. Em dado momento, chegou-se à análise da variedade de termos de que uma língua dispõe para qualificar um objeto ou analisar determinado assunto. E logo me veio à mente a questão cultural e a importância que a conduta social disseminada tem diante da formação do léxico de uma civilização.






Vejamos por exemplo o Brasil - temos o futebol como paixão nacional. Existe uma infinidade de termos e especificidades para analisar o jogo nos seus mínimos detalhes (impedimento, lateral, escanteio, gol olímpico, intermediária (a até mesmo termos diferentes para a mesma coisa como zaga, defesa, retranca...). A mesma variedade de termos é utilizada para descrever profissões, eventos sociais, emitir opiniões diversas e por aí vai.

Agora quando chegamos no campo da filosofia, na anáise mora das coisas; a carência é alarmante. Peguemos o mais "famoso" dos temas por exemplo - o amor. Quando temos a necessidade de expressar nossos sentimento por alguém, ainda que de diversas formas e situações, nos faltam termos. Dizemos que amamos nossa esposa, nosso filho, nosso irmão, nossa mãe, nosso trabalho, nosso dia de folga, nosso hobby... Agora será que o sentimento que temos por todas essas coisas e pessoas é o mesmo? Seria mesmo adequado resumir em uma única palavra uma variedade tão grande de sentimentos e impressões?



Da mesma forma que dizemos gostar das coisas. Gostamos de assistir um filme, gostamos de ajudar ao próximo (ou não?), gostamos de jogar futebol, gostamos de pasta de manteiga amendoim. Mas assim, da mesma forma? É desnecessário dizer que essa escassez de temos gera frequentes maus-entendidos, quando não confusões maiores; mas o problema não é tão raso.


A questão é que o vocabulário de um povo nasce da necessidade, do uso comum, do que ocupa o seu dia-a-dia. Portanto é tão comum vermos uma precisão tão grande nos termos utilizados para descrever atividades, eventos sociais, vestimentas, condimentos, termos técnicos e afins; e uma pobreza enorme quando se trata de avaliar sentimentos, estados de espírito, condutas morais ou termos análogos. É perturbador que sobrem palavras para se descrever um lance esportivo e nos faltem para que possamos expressar o que sentimos, ou descrever um estado de espírito com alguma riqueza de detalhes.

Ontem conversava sobre liberdade com uma amiga; e é consenso que para que ela exista (a liberdade, não a amiga), aconteça primeiro o auto-conhecimento, a reflexão, o diálogo consigo. Pois é impossível que libertemos o que sequer conhecemos. É nesse ponto que se faz necessária esse tipo de análise. E quanto mais se aprofunda nessa senda, maior é a agonia de perceber o quão raso é nossa preparação para lidar ou mesmo entender o que se passa dentro de nós e ao nosso redor. Tudo aquilo que foge dos holofotes e atravessa as fumaças coloridas do espetáculo nos é apresentado como uma massa incolor, como um ilustre desconhecido; quando na verdade deveria ser nosso melhor e mais íntimo amigo.









 








 "Faltam-nos as palavras, faltam-nos os conceitos, faltam-nos os juízos, falta-nos acesso à realidade. Como tão bem apontou Fernando Pessoa, numa das "Quadras ao gosto popular", para o caso da saudade:
Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm."