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quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O papel da verdade na formação do ser






"Olhando fixamente para dentro de seu coração, 
um homem "lê" o que está inscrito na sua consciência íntima, 
como palavras de um texto supremamente auto-evidente. 
Ao subir para a periferia da mente - onde estão depositadas, 
como redes superpostas, a gramática do idioma pátrio, 
as regras de estilo, os usos do vocabulário e as exigências da moda,
 as palavras do discurso íntimo se embaralham, 
entrando por automatismo nesses canais e arranjos pré-moldados 
que as desfiguram e as afastam infinitamente do significado originário. 
Então é preciso mergulhar de novo e de novo, até que a imagem do 
discurso interior fique tão nítida na memória, que as formas da 
linguagem externa se amoldem a ela como meras vestimentas, 
sem deformá-la ou incomodá-la."¹








A mentira se tornou uma prática tão natural ao longo da história humana que pouco esforço é feito no sentido de traçar a real extensão de suas consequências, tornando-a uma alternativa aceitável para livrar seu criador de alguma situação difícil, constrangedora, ou mesmo para facilitar sua vida como uma incrivelmente útil e versátil ferramenta do dia a dia.

Basta voltar um pouco para notar que o próprio pecado original nasceu de uma mentira, inventada para concretizar um plano maligno fruto de um pecado capital (inveja). E dessa mentira se originaram infindáveis outras. O ponto é que nem sempre quem mente tem consciência da mentira que conta. Como descrito na citação inicial, toda informação que processamos passa necessariamente por vários filtros mentais até que se aloje em nossa consciência para ser futuramente utilizada na construção de um pensamento ou fala.

E todo esse processo nos leva a uma pergunta: qual será o estado de limpeza de nossos filtros?

Vamos lá: A mente humana funciona de maneira sistêmica/orgânica. Sendo que quando alguém nega uma verdade fundamental (consciente ou inconscientemente), sua mente é automaticamente privada de uma série de outras verdades que derivam dessa primeira. Esse processo pode se dar primeiro em pequenas mentiras, mas a repetição diária de mentiras pequenas abre precedente para a aceitação de mentiras maiores. E cada um desses processos molda independentemente o caráter, a sensibilidade espiritual, a capacidade de auto-conhecimento e auto-reflexão da pessoa, que vai aos poucos se tornando uma mentira ambulante. A própria essência desse ser se tornou doente de tal maneira, que todas as suas bases e mecanismos de funcionamento estão contaminadas por mentiras. E é assim que uma pessoa entra em estado de neurose.²

Portanto a neurose é o preço da negação da verdade. E para evitar esse quadro, deve-se primeiro admitir a verdade sobre si mesmo. É absolutamente impensável que alguém que desconhece a si mesmo seja capaz de conhecer a verdade sobre as outras pessoas, sobre o mundo, ou sobre qualquer outro aspecto. Uma pessoa que não realiza constantemente uma análise de suas atitudes, é absolutamente honesta e franca consigo mesmo quando a suas falhas, tem seus padrões morais paulatinamente alterados de maneira inconsciente. Uma pessoa que procura ter os olhos focados, a alma limpa e o espírito puro deve necessariamente estar disposta a se voltar constantemente para Deus com honestidade e expõr todas as mentiras que foram ditas, pensadas, em que fingiu acreditar, as más intenções que teve, etc... Ainda que voltemos a praticar essas condutas algum tempo depois (pois isso é inevitável segundo a própria natureza pecaminosa humana), o importante é que essa prontidão em reconhecer os próprios erros e defeitos esteja sempre sendo exercida.


O que não faltam na Bíblia são exemplos de homens que cometeram pecados mortais e ainda assim foram considerados exemplares aos olhos de Deus. Isso se deve não à gravidade do pecado que cometeram, mas pela disposição e sinceridade constantes que os faziam retornar sempre ao Criador, buscando compreensão, sabedoria e superação.

A ideia é que não importa a quantidade de erros que cometemos, mas a inclinação sucessiva que temos em nosso coração para nos abrirmos em total humildade e sinceridade perante a Deus e à nós mesmos. Essa é a base da própria sanidade. Entender que nossas ideias, pensamentos, desejos ou mesmo sonhos, não são o centro do mundo. É ser capaz de parar de olhar para o próprio umbigo e começar a buscar conhecimento da realidade e da verdade que estão adiante. Temos a própria definição da técnica psicanalítica no sentido clássico dentro desse contexto; que consiste na anamnese - lembrar a realidade dos fatos e se desfazer das racionalizações com as quais você a encobriu (processo descrito na citação inicial).

Em suma: o egocentrismo é o resíduo subjetivo que escraviza a mente humana e a torna incapaz de se situar dentro da realidade; ao passo que a sinceridade é a base para a sanidade.

E esse é o momento em que cada um deve submeter tudo ao que foi dito aqui com os traços culturais mais marcantes de nosso tempo: busca por satisfação pessoal, realização de vontades e prazeres egoístas... vidas inteiras baseadas nesse contexto. Creio que poucos instantes bastam para que se conclua que vivemos num sistema extremamente nocivo em relação a valores, comportamentos mundialmente disseminados e aceitos; como se caminhássemos numa densa nuvem tóxica tendo que moldar nossa máscara de proteção (que paradoxalmente consiste em eliminar de si qualquer máscara que tenhamos construído ao longo da vida) dia após dia.








"Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, desperta."
Carl Jung






...

O que usa de fraude não habitará em minha casa; o que profere mentiras não estará firme perante os meus olhos.
Salmos 101:7

Os lábios mentirosos são abomináveis ao Senhor; mas os que praticam a verdade são o seu deleite.
Provérbios 12:22

Pelo que deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo, pois somos membros uns dos outros.
Efésios 4:25

Não mintais uns aos outros, pois que já vos despistes do homem velho com os seus feitos, e vos vestistes do novo, que se renova para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou;
Colossenses 3:9-10

Mas, se tendes amargo ciúme e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade.
Tiago 3:14

Ficarão de fora os cães, os feiticeiros, os adúlteros, os homicidas, os idólatras, e todo o que ama e pratica a mentira.
Apocalipse 22:15









¹: Nota introdutória do ensaio de dialética erística de Arthur Schopenhauer escrita por Olavo de Carvalho - ed. Topbooks (1997)
²: Segundo o psicólogo Juan Alfredo César Müller, neurose é nada mais que uma mentira esquecida na qual ainda se acredita.

sábado, 10 de novembro de 2012

A importância da imaginação como elemento de formação cultural




Bons eram os tempos em que os pais incentivavam seus filhos a desenvolver a criatividade e a imaginação sem muitas barreiras. Éramos incentivados desde sempre a ler contos, fábulas e histórias fantásticas de reinos distantes, épocas remotas ou mesmo nunca existentes; mas que nos ensinavam a pensar, imaginar e fantasiar coisas muito além das aparentemente possíveis.




Há quem veja na religião e no metafísico uma parcela desse tipo de faculdade cognitiva. Mas o fato é que a cada dia que passa, vemos nossas crianças serem inundadas com responsabilidades e obrigações desde seus mais tenros anos. Não existe mais aquela beleza de poder brincar pelo resto do dia depois de ir à aula e cumprir os deveres de casa. Agora os pequenos são preparados desde os primeiros anos de vida como pequenos soldados da sociedade, com aulas de idiomas, esportes, música, psicólogos e tantas outras. Não que a educação não deva existir, ou que atividades extracurriculares sejam ruins. O problema é que elas tem tomado um lugar insubstituível na vida dessas pessoinhas.

Quando pequenos, nossa mente está acostumada a enxergar as coisas através de sua essência. Enquanto como adultos, procuramos enxergar tudo pelo aspecto da utilidade.
E é através da essência das coisas que aprendemos sobre seu significado e mais tarde, sua real utilidade. Portanto, durante a infância é importante que a criatividade, a imaginação e a fantasia sejam trabalhados sem medidas, para que ao passar dos anos, a mente seja capaz de abstrair a utilidade e a função das ideias dentro de um universo muito mais amplo e irrestrito de possibilidades.

Ao transformar um infante num ser completamente absorvido em compromissos, horários fixos, programas técnicos e estudos puramente técnicos e restritos, ou acostumando-o a ter uma vida social muito intensa, acabamos por furtar-lhes essa parte fundamental que a permitiria ter um embasamento indispensável para o desenvolvimento da vida intelectual nos anos seguintes.

E esse comportamento tem se manifestado de forma implacável em nossa cultura. Não é difícil perceber como os grandes clássicos da literatura fantástica, antigas fábulas e contos mitológicos ou épicos são cada vez mais ilustres desconhecidos em nosso meio. Vemos em seu lugar, programas de realidade planejada (reality shows), novelas e dramas de conotação puramente relacional ou romântica... enfim, tudo o que tem um viés mais restrito, pessoal, que trata de relações puramente pessoais, sociais ou emocionais, tendem a fazer um sucesso absoluto, mesmo entre os mais novos. E aquelas obras que deveriam despertar a curiosidade deles já são criticadas e tomadas como algo infantil, inferior, indigno de atenção; como se a mentalidade puramente lógica mais comum nos adultos já tivesse arrefecido seu espírito, mesmo que estejamos falando de um menino de 7 anos de idade. Cria-se então a torpe impressão de que tudo que se trata do mundo material, terreno e puramente humano, vivido dentro do reino das possibiliades apreensíveis e limitadas pelos sentidos, fosse maduro, desejável e prático, e todo o mais, apenas passatempo para crianças bobas e iludidas, em desconformidade com a realidade.

Acontece que se nos propusermos a um breve retorno às origens do pensamento ocidental, recorrendo da filosofia grega que baseou e norteou os pensamentos de todos os grandes céticos, materialistas e positivistas europeus, vamos perceber que o pensamento lógico jamais seria possível sem a imaginação, essa faculdade hoje tão desprezada e caluniada. Como foi dito, quando se baseia por fonte de abstração e cognição apenas os cinco sentidos, só existe o aqui e o agora, o mensurável, o palpável, o tangível, e no plano do pensamento, só podemos imaginar conceitos abstratos, ideias e esquemas de raciocínio. A imaginação é exatamente a ponte que une esses dois pontos, sem a qual se criaria um abismo instransponível entre o que se passa em nossa mente e o que há no mundo concreto.

Portanto, fica claro que a capacidade imaginativa (que é previamente construída pelo contato com a fantasia, com o fantástico), é a base não só para o desenvolvimento intelectual de quem quer que seja, mas também para que se crie a capacidade de expressão das percepções, sentimentos e ideias que temos interiormente. Ou seja, quanto menor for o universo imaginativo da pessoa, mais limitada ela será no campo lógico, prático, real.

Assim fica o meu alerta para os que possuem uma predileção quase que absoluta para as obras puramente lógicas, humanas e possíveis, e desprezam o fantástico e o contemplativo. Muitas vezes esses pré-conceitos são criados usando como escudo a roupagem infantil ou "absurda" que a maioria das obras fantásticas possuem, como é o caso de fábulas com animais falantes, de histórias épicas como por exemplos As Crônicas de Nárnia, ou O Senhor dos Anéis, outros contos de mitologia, em filmes e seriados de ficção e até mesmo em escritos históricos religiosos.

A cultura oriental é perfeita para fechar esse raciocínio. O advento das histórias em quadrinhos se deu na américa, em 1895, mas é no japão onde elas são mais fundidas na cultura e consumidas numericamente; com estilização própria voltada para os contos, e a cultura milenar ocidental (mudanças que deram ao nome dessa obra de mangá, em todo o oriente).
E não é de se espantar que é justamente nessa terra, de onde saem as maiores mentes das ciências exatas e corporações tecnológicas do mundo?

Fica a reflexão.



"O homem não é racional só
quando raciocina, mas também, implicitamente, 
quando percebe e imagina."
Olavo de Carvalho

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Por que a fama e o sucesso são tão importantes






Mais do que nunca, se busca a vitória, o sucesso e a fama. Mas poucos param pra pensar no que significam essas coisas. São conceitos relativos e subjetivos, é claro; embora haja pontos comuns nessas definições que são aceitos por quase todos nós.

O que me trouxe ao estudo da natureza e da base dessa busca, desses conceitos e da mentalidade que sustenta esses valores foi justamente entender o motivo da profunda insatisfação e miséria interior que experimentam as pessoas que parecem mais ter se aproximado do que quase todos buscam e admiram.

Não vou tratar aqui de clichês de usar como exemplo atores de hollywood, jogadores de futebol, ou esportistas famosos. A razão da derrocada de celebridades é popular, bem conhecida e relativamente simples de ser evitada. Pretendo tratar nessa breve reflexão é do motivo que trouxe a sociedade atual a valorizar tanto a ascensão social, financeira, carreirística, entre outras.

Pode parecer que a busca pela competição e pela luta entre os seres é algo completamente natural, que sempre existiu. Mas não é bem assim. A disputa e a luta são componentes da vida, não seu objetivo maior. Há situações específicas em que aparece a luta, mas ela só se justifica em função de outras coisas. Por exemplo, a leoa que mata uma zebra para dar de comer a seus filhotes está lutando contra a zebra (meio) para alimentar seus filhotes (fim). Como você pode fazer da luta o centro dos acontecimentos? Se esse fosse o centro a leoa poderia se dar por satisfeita ao matar a zebra e ir embora, se esquecendo de levar a comida a seus filhotes, mas isso não acontece.



É curioso observar hoje em dia, como vemos por todos os lados pessoas que vivem "na luta", que buscam "a felicidade". Vemos aí um meio e um sentimento sendo colocados como um fim e uma sensação que deve ser buscada a todo momento, como se a vida estivesse completa assim que a felicidade possa ser plena e constante. Conceitos assim aplicados levam aos clichês que vemos tanto de pessoas lutando a vida toda para ter mais e mais dinheiro, ou mais e mais fama, ou mais e mais sucesso seja na sua carreira, ou na vida social, ou onde for. É como se a vida fosse uma eterna jornada de disputa, superação e competição com os outros. Mas aí todos dirão - "ah, mas eu luto para ser alguém na vida, para me sustentar, para manter a minha família" - sim, isso é necessário, mas perde totalmente o sentido quando se torna um fim em si mesmo, como expliquei no exemplo da leoa e seus filhotes. Se torna um problema algumas vezes patológico quando o trabalho ou qualquer tipo de luta e ambição se tornam o fim na vida de alguém. É nesse ponto que a ambição e a ganância se transformam de virtudes em males. Não é raro por exemplo ver pessoas que já têm uma reserva de dinheiro para várias gerações e ainda assim não conseguem parar de trabalhar incessantemente ou de dedicar a maior parte do seu tempo, saúde e atenção para isso. Vindo até mesmo a padecer de males pelo excesso nessas atividades, só para conseguir um pouco mais, elevar um pouco mais o padrão de vida.
É aí que o que vem de fora se torna maior do que se tem por dentro. E esse conceito aplicado dessa maneira só aparece na história da humanidade a partir de certo ponto.

Desde o início dos tempos os seres humanos tinham consciência de que viviam dentro de uma esfera de experiências ilimitadas, mas sujeitas a leis de possibilidades físicas e mentais; enfim, leis universais. A partir do momento em que a noção dessas possibilidades é perdida, surge a necessidade individual de limitação dessas possibilidades, pois ninguém suportaria viver num contexto de total abertura em todos os sentidos e possibilidades, em que não há mais a noção da impossibilidade que limita o ilimitado. O conceito dado por Alexandre Koyré em seu livro O Universo Infinito trata exatamente disso. Das limitações que o próprio ser humano cria para si mesmo dentro do infinito de possibilidades. É a partir daí que são formados diferentes áreas e nichos de interesse e atuação social, profissional ou mesmo de lazer e hobbies. Cada pessoa inserida nesses diferentes contextos pode desenvolver o nocivo hábito de julgar aspectos de meios e áreas que não compreende, baseados nos aspectos que são capazes de compreender e explicar, baseados em suas experiências ou nas dos que o cercam. Assim criam uma espécie de mundo fictício para si, onde tudo funciona de acordo com a lógica e as bases pré-estabelecidas criadas por si mesmo; um tipo de ilusão auto-infligida inconsciente; uma vez que a pessoa raramente é capaz de notar que baseia suas impressões e opiniões em conceitos que podem não se aplicar ao sujeito dessas ações. Essa disparidade geralmente é aceita e relevada em questões minoritárias, mas raramente percebida e atenuada em campos mais abrangentes e mais solidificados por um processo histórico. Por exemplo: um sujeito é capaz de compreender o flagrante desinteresse do outro por sua paixão pela física quântica, mas não hesita em tomá-lo por tolo quando ele diz não partilhar da sua fé, ou de ambições financeiras e sociais almejadas por todos.

Como demonstrado, esses parâmetros aparentemente universais não passam de construções sociais, temporais ou mesmo geográficas. É assim que no decorrer dos séculos, essa incapacidade de compreensão universal passa a influenciar pensadores, teóricos, filósofos e cientistas, e começam a surgir teorias e construtos sociais embasados por esse equívoco sutil mas tremendamente significativo. As pessoas começam a acreditar estarem vivendo num contexto de total liberdade (especialmente nos dias de hoje quando gozam de liberdade física, financeira, espiritual, intelectual, etc), mas tem sua visão completamente estigmatizada por essa patologia cognitiva; e passam, assim, a vivenciar aquilo como um sonho acordado, acreditando que aquilo é realmente o mundo.

Para simplificar: se você está lendo um livro e algum ruído o incomoda, sua iniciativa é primeiramente de abstrair aquela distração e não prestar atenção nela. Funciona como uma defesa automática contra tudo o que interfere no enredo que lhe interessa verdadeiramente. Hoje as pessoas chamam esse processo de ter uma "opinião" - da qual os outros podem concordar ou discordar, mas nunca se ausentar completamente daquela ideia. Quando duas pessoas concordam acerca de um assunto, significa que elas possuem um mecanismo de defesa comum em relação a distrações que possam vir a perturbar o funcionamento daquele espetáculo que se passa em suas mentes. É assim que se estabelecem e se mantém a maioria das dinâmicas sociais e relacionais atualmente. As pessoas se isolam em grupos de interesses comuns e ignoram direta ou indiretamente, total ou parcialmente tudo o que foge do centro daquele pseudo-universo.

Assim a ideia da sobrevivência do mais "capaz", "preparado" e "bem sucedido" passa necessariamente por esse filtro comum, ditado sempre pelos poucos que controlam os rumos da sociedade, usando os demais como massa de manobra para ampliar suas ideias e o efeito delas sobre os demais. Cria-se então, com certa facilidade, a ideia de que seguir aquele padrão de condutas e conquistas representa o sucesso e bem-estar, para todos!
É incrível como é comprada com facilidade a ideia de que bilhões de pessoas devam buscar as mesmas coisas para se realizarem, num mundo em que tantos se dizem originais, personalizados e únicos; ainda que pensem e ajam quase que exclusivamente da mesma forma (salvo variações mínimas que na maioria das vezes servem para criar uma ilusão, uma aparência de diferença e originalidade). Não demora então, para que se crie então uma convergência de argumentos materialistas ou pseudo-religiosos para incorporar a ideia da fama e do sucesso à da sobrevivência. O sujeito que é "bem sucedido" na vida (segundo os viciados padrões estabelecidos a priori), passa a ser portador do mérito, e então aparece aí a ideologia de adoração do sucesso - o sucesso é a obrigação de todos os seres humanos.

É desnecessário explicar que a quantidade de pessoas que conseguem ter a mais sutil consciência desse processo, são justamente as que são excluídas (ainda que discretamente) do centro do convívio social, das páginas, dos cliques e holofotes. São pessoas cuja existência passa marginalmente pelos demais. O curioso é que anos, décadas ou séculos mais tarde, venha a se perceber que as pessoas que mais fizeram diferença real para o progresso das demais são na maioria das vezes, como essas que são tidas por lunáticas, desajustadas, excêntricas ou perdidas (notem que os adjetivos para qualificar pessoas que não entram de cabeça na dinâmica social dominante são sempre subjetivos e relativistas). Mas ainda assim a mediocridade e o espírito de bando reinarão sempre que a opinião da maioria for tomada como lei (não sou contra a democracia política, apenas ideológica), portanto continuaremos a ver por um bom tempo ainda essa entropia de ideais, objetivos, auto-promoções, e pessoas que são adoradas e preteridas quando se vendem como produtos em redes sociais, ou demonstram algum destaque em determinado setor. Essa é a sina dos que se recusam a questionar coisas tão importantes como suas motivações próprias e o real valor daquilo que mais almejam. Para os pequenos de alma, realizações materiais, sociais ou profissionais vão bastar, não adianta tentar abrir-lhe os olhos.
Para os demais, deixo o meu boa noite!




terça-feira, 21 de agosto de 2012

Entrevista





Só para deixar o link de uma entrevista que concedi ao site/blog de uma amiga, o Reflexões Femininas.

Os assuntos abordados foram basicamente relacionados à instituição familiar e a questão dos direitos do homem no contexto social atual.

link: http://reflexoes-femininas.blogspot.com.br/2012/07/entrevista-com-marcos-carvalho-moral.html

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Votar nulo resolve?


Tenho visto diversas campanhas incentivando o voto nulo nessas eleições por todos os lados (principalmente nas engenhosas redes sociais).
A indgnação contra os políticos em geral é justificada, claro. Agora será mesmo que anular uma eleição vai resolver o problema?




Vamos à parafernalha legal em primeiro lugar: Uma decisão de 2006 do TSE não considera para anulação da eleição o voto nulo pelo eleitor.

O Art. 224 do Código Eleitoral diz que "se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais,  julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias."
Mas o TSE entende atualmente que essa nulidade não inclui os votos nulos por "manifestação apolítica do eleitor". 

E aqui vemos as reais causas de uma possível anulabilidade das eleições:

"Art 221. É anulável a votação:
I – quando houver extravio de documento reputado essencial;
II – quando for negado ou sofrer restrição o direito de fiscalizar, e o fato constar da ata ou de protesto interposto, por escrito, no momento;
III - quando votar, sem as cautelas do Art. 147, § 2º.
a) eleitor excluído por sentença não cumprida por ocasião da remessa das folhas individuais de votação à mesa, desde que haja oportuna reclamação de partido;
b) eleitor de outra seção, salvo a hipótese do Art. 145;
c) alguém com falsa identidade em lugar do eleitor chamado."
Em seguida, o art 222 do Código Eleitoral informa que a votação viciada de falsidade, fraude, coação, interferência do poder econômico, além do desvio ou abuso de poder de autoridade, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei, é passível de anulação. 

Mas muito bem, vamos supor que o Brasil é um país em que as leis são cumpridas, em que os políticos são honestos e bem intencionados vão aceitar essa possível indignação esmagadora do eleitorado brasileiro, que votaria maciçamente nulo e o obrigariam a convocar novas eleições em até 40 dias (onde nenhum dos candidatos da eleição anterior poderiam se candidatar). Suponhamos também que já não tenha sido comprovado que manipular votos em urnas eletrônicas é mais fácil que casar com a Gretchen e que as pessoas que as operam sejam da mais alta confiabilidade.

O que aconteceria então (além da uma nova gastança de dinheiro público para realização da nova eleição que não sai barato)? Quem seriam os novos políticos que resolveriam o problema? De onde sairia essa nata de cidadãos íntegros, honestos e bem intencionados para governar nosso país?

O que aconteceria é que os partidos se organizariam rapidamente, sugariam mais dinheiro dos empresários e claro, da população para novas campanhas-relâmpago e colocariam candidatos desconhecidos e consequentemente de "ficha-limpa" para disputar as novas eleições. Alguém mais percebeu que não há jeito mais cômodo de transformar funcionários partidários em laranjas sem nome nem rosto para obedecerem à mesma agenda dos políticos conhecidamente salafrários? Mas agora com o bônus de que o deles não estará mais na reta!

Muitos diriam que ainda que não resolvesse nada, a anulação de uma eleição serviria para demonstrar o descontentamento do povo com a política se os políticos, etc...
Sim, realmente. Agora eu pergunto: Vocês acham mesmo que os políticos acham que o povo gosta deles? Acham mesmo que eles dariam a mínima para uma massiva demonstração de indignação da sociedade? Isso por acaso tocaria fundo o coração deles, os tornando pessoas mais probas e diligentes? Sejamos francos. Acreditar que anular uma eleição vai resolver algum problema é achar que existe pote de ouro no fim do arco-íris.

Manifestações como marchas e protestos contra a corrupção são absolutamente inócuas. É a manifestação do óbvio ululante, é dizer o que todo mundo está cansado de saber. Se não forem direcionadas a pessoas, partidos ou atos concretos, não surtirão efeito algum. Pois política não é feita de ideias, de dinheiro, ou de partidos; mas de pessoas.

Vamos deixar de lado essa utopia de que com burocracia ou manobras técnicas resolveremos alguma coisa nesse país.
É clichê, mas a verdade é que o problema do Brasil são mesmo os brasileiros. Quem ocupa os cargos de comando são apenas cidadãos comuns que tem alguns contatos ou grana a mais. Mas a base cultural, a formação ética e moral, é absolutamente a mesma do cidadão comum.

Um país é estruturado primeiro pela cultura, por valores éticos e uma base familiar. Não existirão políticos pra resolver os problemas dos quais tanto reclamamos a menos que comecemos a mudar a nós mesmos. O brasileiro exige políticos íntegros mas não conseguem transmitir isso nem pra própria família, nem pra si mesmos. O que poderia esperar então de alguém sem essas bases que se encontra com as mãos em todos os recursos de um país tão cheio de recursos como o nosso?

Vamos reclamar menos e mudar mais. Começar pelo começo, trabalhar primeiro em si mesmo, depois em nossa família, depois em nosso ciclo social, depois bairros, cidades e por fim, o país. Não se começa a fazer o bolo pela cereja.



Marcha da família com Deus pela liberdade, em 1964.
O maior movimento popular brasileiro, que reuniu mais de meio milhão de pessoas.  



terça-feira, 24 de julho de 2012

Vida intelectual - Raiz, tronco e frutos


Arthur Schopenhauer foi conhecido como o filósofo do pessimismo. Muitos o enxergam como um sujeito que apesar de incrivelmente inteligente, tivesse vivido amargurado e desgostoso com a vida. Eu me pergunto o porque disso ser algo indesejável. Nunca me entrou na cabeça qual a grande vantagem de buscar alegria ou pautar nossos pensamentos e ações por puras emoções, sentimentos ou desejos. Há algo maior a se buscar do que satisfação.

A vida da maioria das pessoas realmente profundas intelectual e espiritualmente que conheço não transcorre da mesma maneira que a maioria das outras. Elas não vivem em busca de nada para si, mas de respostas, de compreensão para questões que os que vivem para si sequer tem consciência ou capacidade de encontrar e decifrar.

Um exemplo de pessoa mundialmente conhecida nos dias de hoje que pode ilustrar o que digo é o ator Keanu Reeves:




Nessa imagem ele é visto num metrô de Nova Iorque, lendo o jornal, como qualquer pessoa. Nada de aviões, helicópteros, ou carros de luxo.

Reeves vem de uma família problemática. A namorada, com quem ele ia se casar, morreu em um acidente de carro. Um dos seus melhores amigos, o também ator River Phoenix, morreu de overdose. E sua irmã teve leucemia. Está curada. E Reeves, então, resolveu doar 70% do que ganhou com o filme “Matrix” para hospitais que tratam dessa doença.

O ator não tem guarda-costas, não usa roupas da moda, mora em um flat e, no fim de 2011, foi visto no metrô de Nova York cedendo o lugar para uma senhora.

Naturalmente que aos olhos da mídia, de outras celebridades e da maioria das pessoas ele deve ser visto como alguém excêntrico, perturbado, talvez até louco. Mas quando indagado sobre seu comportamento, ele se limitou a responder:

“Você precisa ser feliz para viver, eu não.”

Essa declaração causaria um certo choque na mente de qualquer um que tenha a mínima capacidade reflexiva e viva sob a máxima de "aproveitar a vida ao máximo" ou "o que importa é ser feliz".

Acontece que a mente e o espírito de pessoas como Reeves não se satisfazem com as mesmas coisas que as de uma pessoa "normal", ou medíocre. A sensação de comodidade, conforto e o gozo do luxo não bastam para pessoas com espírito elevado. Elas tem a plena convicção de que essas coisas não passam de alentos supérfluos e momentâneos, que não preenchem verdadeiramente as necessidades dos que caminham acima do comum, do ordinário.

É nesse ponto que a enorme sabedoria de lucidez de Arthur Schopenhauer vem à tona. Pessimismo é muito diferente de ser alguém deprimido, que só vê desgraça em tudo, ou como descrevem pateticamente alguns; alguém que "atrai energias" negativas.
Não, ser pessimista na maioria das vezes é ter os pés no chão. É enxergar as coisas como elas são, e não como gostaríamos que elas fossem. É abrir mão de criar um mundo de falsas esperanças e ilusões e aceitar o pior como natural, não como infortúnio ou motivo de decepção ou abalo.

Após a morte do filósofo alemão, foi dito que ele guarvada alguns manuscritos pessoais que ele reuniu ao decorrer dos anos, contendo meditações "destinadas a si mesmo"; trazendo sua filosofia não como pensamentos abstratos, mas como um manual prático para a vida.
Acreditava-se que esses escritos haviam se perdido, ou sido queimados pelo testamentário de Schopenhauer, que alegava tê-los queimado a pedido do próprio filósofo antes de sua morte; mas fragmentos dessa obra apareceram em publicações e livros escritos pelo próprio detentor de seu legado pessoal, anos mais tarde.

Ocorre que os primeiros capítulos do que foi recuperado desse "livro secreto" trata exatamente da forma com que homens de espírito desenvolvido, que dedicaram sua vida à intelectualidade e a busca do que transcende aos sentidos humanos. Ainda que sejam vistos por quase todos como derrotados, foram assim que viveram boa parte dos maiores seres que caminharam por este planeta:

"Querer o menos possível e conhecer o mais possível, eis a máxima que conduziu minha trajetória de vida. Pois a vontade é o que há de mais comum e de pior em nós. Devemos ocultá-la como se faz com a genitália, embora ambos sejam a raiz do nosso ser. Minha vida é heróica e não pode ser avaliada pelo metro do filisteu, ou com o cúbito do merceeiro, muito menos pela medida do homem comum, que não possui outra existência senão a do indivíduo limitada a um curto espaço de tempo. Portanto, não posso me afligir ao pensar que me faltam coisas que fazem parte da trajetória normal de um indivíduo: emprego, casa, jardim, esposa e filho. A existência desses indivíduos transcorre de maneira sempre igual. Já a minha vida, ao contrário, é intelectual, e seu desenvolvimento regular e atividade constante tem de produzir frutos nos poucos anos de pleno poder espiritual e de sua livre utilização, e, assim, por séculos enriquecer a humanidade. Minha vida pessoal é tão-somente a base para a intelectual, a conditio sine qua non, ou seja, algo totalmente secundário. Quanto mais estreita for esta base, tanto mais segura; e se realizar o que deve com relação à minha vida intelectual, terá atingido o seu fim. O instinto, que é próprio a todos aqueles que tem objetivos intelectuais, também se tornou um guia seguro para mim, de forma que deixei de lado os interesses pessoais e tudo concentrei em minha existência espiritual. Por isso também o fato de a trajetória de minha vida parecer desconexa e destituída de plano não pode me surpreender: ela se assemelha ao acompanhamento na harmonia, que igualmente não pode conter em si nexo algum, visto que serve apenas de fundo para a voz principal, na qual se encontra o nexo. As coisas de que necessariamente sou privado em minha vida pessoal me são compensadas de outra maneira, ao longo da vida, pelo pleno gozo do meu espírito e empenho em favor de sua orientação inata; de fato, se as possuísse, não as fruiria, e ser-me-iam até mesmo impeditivas. Para um espírito que doa e realiza por si mesmo aquilo que nenhum outro pode da mesma forma doar e realizar, e que justamente por isso subsiste e perdurará - seria ao mesmo tempo cruel e insano querer forçá-lo a fazer outras coisas, ou mesmo atribuir-lhe tarefas obrigatórias, afastando-o do seu dom natural.


Já nos primeiros anos de minha juventude, notei que enquanto todas as outras pessoas aspiravam a bens exteriores, eu não me dirigi para tais bens, pois trago em mim um tesouro infinitamente mais valioso do que quaisquer bens exteriores; trata-se apenas de desenterrá-lo, para o que as primeiras condições são formação espiritual e ócio total, portanto, independência. A consciência disso, no princípio obscura e vaga, tornou-se, ano após ano, cada vez mais clara e foi suficiente para sempre fazer de mim uma pessoa prudente e parcimoniosa, isto é, para dirigir o meu cuidado para a manutenção de mim mesmo e de minha liberdade e não para algum bem exterior. Indo de encontro à natureza e ao direito humano, tive de abster-me de usar minhas forças em favor de minha pessoa e do fomento de meu bem-estar, para assim empregá-las em prol da humanidade. Meu intelecto não pertenceu a mim, mas ao mundo. A percepção deste estado de exceção e da difícil tarefa dele procedente - viver sem empregar minhas forças para mim mesmo - exerceu contínua pressão sobre o meu ser e tornou ainda mais preocupado e cuidadoso do que já era por natureza. No entanto, levei tudo a bom termo, realizei a tarefa, cumpri minha missão.


Comparada à importância do indivíduo, a importância do homem intelectualmente imortal tornou-se em mim algo tão infinitamente grande, que eu, embora me sobrecarregasse com tantas preocupações pessoais, logo as deixava passar e desaparecer, assim que um pensamento filosófico se anunciava. Pois tal pensamento sempre era para mim a coisa mais séria, o resto, ao contrário, mero passatempo. Esse é o título de nobreza e a carta de alforria da natureza. A felicidade do homem ordinário reside na alternância entre trabalho e prazer: para mim, ao contrário, ambos são uma coisa só. Eis por que a vida de homens de minha espécie é necessariamente um monodrama. Missionários da verdade a ser transmitida ao gênero humano, como eu, após terem se reconhecido como tais, pouco terão em comum com as pessoas, exceto por sua própria missão, assim como os missionários na China que não se confraternizam com os chineses. Em todas as situações da vida em sociedade, um homem como eu, sobretudo na juventude, sente-se continuamente como alguém que usa roupas que não lhe servem."




Arthur Schopenhauer
























"Devemos viver sem nenhum arrependimento.

E ser mais livres que qualquer um..."


Portgas D. Ace



quarta-feira, 4 de julho de 2012

Cães e gatos - por H. P. Lovecraft

Traduzido por Vinícius M.R de Carvalho e Victor Galdino


GATOS E CÃES
por H.P. Lovecraft
 


Tendo tomado conhecimento da briga entre cães e gatos que está para ocorrer em teu clube literário, não pude resistir ao ímpeto de contribuir com alguns uivos e sibilantes de minha parte na contenda, ainda que consciente que as palavras de um venerável ex-membro mal possam pesar contra o brilhantismo dos ainda ativos aderentes que venham a ladrar do outro lado. Ciente de minha inaptidão para o argumento, um correspondente que prezo supriu-me com os registros de uma controvérsia similar na Tribuna de Nova Iorque, onde o Sr. Carl van Doren toma o meu lado e o Sr. Albert Payson Terhune toma o da tribo dos cães. Destes eu esperava plagiar os dados que precissase; mas meu amigo, em sua sutileza genuinamente maquiavélica, proveu-me apenas com uma parte da seção sobre os felinos enquanto o relatório canino veio-me às mãos na íntegra. Sem dúvida ele imaginava que deste modo, considerada minha parcialidade, promoveria algo como uma justiça definitiva, mas para mim é excessivamente inconveniente, já que vai forçar-me a ser mais ou menos original nas considerações seguintes.
Entre cães e gatos meu grau de preferência é tão grande que nunca me ocorreria compará-los. Não possuo nenhuma antipatia especial contra os cães, como não possuo contra macacos, seres humanos, comerciantes, vacas, ovelhas ou pterodáctilos; mas pelo gato sempre cultivei um respeito e afeto particulares desde os meus primeiros dias de infância . Em sua elegância impecável e superior auto-suficiência vi um símbolo da beleza perfeita e da impessoalidade do próprio universo considerado objetivamente, e em seu ar de silencioso mistério reside para mim toda a maravilha e o fascínio do desconhecido. O cão apela à emoções simplistas e inferiores; o gato, às fontes mais profundas da imaginação e da percepção cósmica da mente humana. Não é coincidência que os contemplativos egípcios, além de espíritos poéticos como Poe, Gautier, Baudelaire e Swinburne , eram todos adoradores do ágil felino.
Naturalmente, a preferência de alguém por cães ou gatos depende completamente de seu temperamento e ponto de vista. Para mim o cão é o favorito dos indivíduos superficiais, sentimentais e emocionais - pessoas que sentem mais do pensam, que atribuem importância à humanidade e às convenções populares do vulgo, e que encontram o seu maior consolo na adulação e dependência mútua que dão forma à vida gregária. Tais pessoas vivem em um mundo limitado e imaginário; aceitando acriticamente os valores do folclore comum, e sempre preferindo ter suas crenças, sentimentos e preconceitos estimados, a desfrutar de um puro prazer filosófico e estético que surge do reconhecimento e contemplação da austera e absoluta beleza. Isto não é dizer que este caráter não reside, também, no amor aos felinos da elurofilia vulgar, apenas que nesta existe um fundamento de verdadeiro esteticismo que a cinofilia não possui. O verdadeiro amante de gatos é aquele que demanda ajustamentos ao universo mais claros do que a placidez da vida doméstica costuma prover; é aquele que recusa-se a engolir a noção sentimentalóide de que todas as pessoas boas amam os cães, as crianças e os cavalos enquanto as pessoas más desgostam e são desgostados por estes. O amante dos felinos não está disposto a declarar-se a si e a seus sentimentos simples como a medida de todos os valores, ou deixar que vãs noções éticas venham a distorcer o seu juízo. Em outras palavras, ele está mais disposto a admirar e respeitar do que exibir e mimar; e não é presa da falácia que diz que sociabilidade e empatia sem sentido, ou devoção escrava e obediência, constituem algo que deve ser intrinsicamente admirado ou exaltado. Os que amam os cães justificam-se nestas qualidades comuns, servis e plebéias, e julgam a inteligência de um animal de estimação pelo grau de conformidade deste com os seus desejos. Amantes de felinos escapam desta ilusão repudiando a idéia de que subserviência e capangagem demonstradas ao homem constituem algum mérito, os amantes de gatos sentem-se livres para prezar a independência aristocrática, o auto-respeito e a personalidade individual, unidas à elegância e beleza, tipificadas por este frio, ágil, cínico e auto-suficiente senhor dos telhados.
Pessoas de idéias rasas -- a classe média citadina desprovida de imaginação, satisfeita com a rotina e que subscreve o credo popular dos valores sentimentais -- serão sempre amantes de cães. Para eles nada será mais importante do que eles próprios e os seus sentimentos primitivos, e nunca deixarão de estimar e glorificar o animal que melhor tipifica estes. Tais pessoas estão submersas no vórtice do idealismo e subserviência orientais que arruinaram a civilização clássica na Idade das Trevas, e vivem em um mundo plano de valores sentimentais abstratos onde as suas insípidas ilusões de submissão, gentileza, irmandade e humildade são engrandecidas como virtudes, e filosofia e ética falsas são erigidas sobre as pequenas reações de músculos flexores. Esta herança, ironicamente impingida sobre nós quando a política romana elevou a fé de um povo em estilhaços à supremacia durante o império de Constantino, permaneceu como um punho firme a agarrar os fracos e sentimentalóides; e talvez tenha alcançado o seu platô no insípido século dezenove, onde as pessoas passaram a prezar os cães por "serem tão humanos" (como se a humanidade fosse algum padrão merecedor de mérito!), e o honesto Edwin Landseer (1) pintou centenas de Fidos jactantes e Rex e Totós com toda a trivialidade antropóide, mesquinha e "graciosa" dos vitorianos eminentes.
Mas dentre o caos da prostração intelectual e emocional alguns espíritos livres sempre apareceram para as antigas realidades civilizadas que o medievalismo eclipsou -- a clássica e inexorável lealdade à verdade, à força e à beleza presentearam com uma mente lúcida e um espírito insubmisso ao Ariano Ocidental confrontado com a majestade, o deleite e a impavidez da Natureza. Esta é a estética viril e a ética dos músculos extensores -- as bravas e resistentes crenças e preferências de orgulhosos, dominantes, invictos e corajosos conquistadores, caçadores e guerreiros -- e faz ela pouco uso das dissimulações e pusilanimidade dos gregários, dos pacifistas, covardes e sentimentalóides. Beleza e suficiência -- duas qualidades do próprio cósmos -- são os deuses deste tipo pagão que desconhece cadenas; para o adorador de tais coisas eternas a suprema virtude não pode ser encontrada na baixeza, na obediência, no apego e na pieguice. Este devoto buscará aquilo que melhor encarna o deleite das estrelas e dos mundos e das florestas e dos mares e dos sóis que se põem, e que melhor representa a indolente, assenhorada, acurada, auto-suficiente, cruel, independente, altiva e caprichosa impessoalidade daquela que tudo governa, a Natureza. Beleza -- calma -- indolência -- repouso filosófico -- auto-suficiência -- mestria indomada -- onde mais podemos encontrar estas coisas encarnadas e mesmo metade da perfeição e completude que marcam o seu aparecimento no incomparáve e suavemente furtivo gato, que perfaz a sua misteriosa órbita com a incansável certeza de um planeta em meio ao infinito?
Que o cão é caro aos das classes camponesa e média desprovidos de imaginação enquanto o gato apela ao sensível poeta-aristocrata-filósofo ficará claro no momento em que refletirmos sobre a questão da associação biológica. A plebe prática julga uma coisa pelo seu tato, sabor e cheiro imediatos; enquanto tipos mais delicados formam suas estimativas pela associação de imagens e idéias que o objeto evoca às suas mentes. Quando se trata de cães e gatos, o peão insensível vê apenas dois animais diante de si, fundamentando sua preferência na capacidade relativa de cada um deles em suprir as suas pobres e uniformes idéias sobre a ética, a amizade e a subserviência. Entretanto, o gentleman e o pensador vêem cada um em suas filiações naturais e não podem deixar de perceber que nas grandes simetrias da vida orgânica os cães encaixam-se junto aos mal-arranjados lobos, raposas, chacais, coiotes, dingos e hienas; enquanto os gatos ladeiam os senhores da selva em suas marchas, o orgulhoso leão, o sinuoso guepardo, o magnífico tigre e a formosa pantera. Cães são os hieróglifos da emoção cega, inferioridade, apego servil e gregaridade -- atributos de homens medianos, estupidamente passionais e subdesenvolvidos em suas capacidades intelectuais e imaginativas. Gatos são as runas da beleza, invencibilidade, maravilhamento, orgulho, liberdade, frieza, auto-suficiência e refinada individualidade -- qualidades de homens sensíveis, esclarecidos, mentalmente cultivados, pagãos, cínicos, poéticos, filosóficos, desapegados, reservados, independentes, nietzscheanos, indomados, civilizados e nobres. O cão é um camponês e o gato é um cavalheiro.
Podemos julgar o tom e as preferências de uma civilização pelas suas atitudes em relação aos cães e aos gatos. O orgulhoso Egito, onde o Faraó era Faraó e as pirâmides erguiam-se belas conforme o desejo daquele que as concebeu, curvava-se ao gato, e templos eram erguidos à sua deusa em Bubaste. Na Roma imperial o gracioso leopardo adornava as melhores casas, sentado no átrio, sua beleza insolente e sua coleira e cadenas douradas; ainda, após a era dos Antoninos o gato foi importado do Egito e celebrado como raro e custoso luxo. Assim foram os povos dominantes e esclarecidos. Quando, porém, olhamos para a prostrada Idade Média com as suas superstições e êxtases e pietismo e ladainhas acerca dos santos e suas relíquias encontramos pouca consideração às feições calmas e impessoais dos felinos; e observamos um triste espetáculo de ódio e crueldade contra a bela criaturinha cujas virtudes foram o suficiente para que sofresse entre os peões ignorantes que ressentiam sua orgulhosa frieza e temiam sua críptica e elusiva independência como algo similar aos poderes tenebrosos da bruxaria. Estes rudes escravos do misticismo oriental não podiam tolerar o que não servia às suas próprias emoções fáceis nem aos seus tacanhos propósitos. Queriam um cão para babar, caçar e realizar tarefas servis e não encontravam alimento espiritual no regalo felino que é a beleza desinteressada. Podemos imaginar como devem ter ressentido o felino: seu magnificente repouso, tranquilidade e desdém para com as triviais preocupações e intenções humanas. Jogue um pau, o cão servil baba, transpira e tropeça para devolvê-lo. Faça o mesmo perante um gato, e ele o olhará com polidez e com um entretido aborrecimento. Assim como pessoas inferiores preferem o animal inferior que corre excitado quando outrem precisa d'algo, também as pessoas superiores respeitam o animal superior que vive sua própria vida e sabe que as pueris brincadeiras de pega-e-traz dos estranhos bípedes não lhe dizem respeito nem são dignos de sua atenção. O cão late, implora e cai quando bates o látego. Isto é prazeroso ao camponês que ama a submissão e deseja sempre um estímulo à sua auto-importância. O gato, entretanto, convence-te a brincar em seu benefício quando quer entreter-se; fazendo-te correr pela sala com um naco de papel na ponta de um barbante quando quer exercitar-se mas recusando todas as tentativas de fazê-lo brincar quando não disposto do humor. Isto é personalidade, individualidade e auto-respeito -- a calma mestria de um ser cuja vida é dele e não sua -- e o indivíduo superior reconhece e aprecia isto pois é ele também um espírito livre cuja posição está assegurada, cuja única lei é sua própria herança e senso estético. Tudo considerado, vemos que o cão apela à essas almas primitivas e emocionais cujas principais demandas ao universo são afeição sem sentido, compaixão inútil e aduladora subserviência; enquanto o gato reina entre aqueles espíritos mais contemplativos e visionários que pedem do universo tão-somente a visão objetiva de tocante, etérea beleza e o simbolismo vivo da imperturbada, persistente, repousada e impessoal ordem e suficiência da Natureza. O cão dá, o gato é.
Pessoas simplórias sempre sobrestimam o elemento ético na vida, e é bastante natural que façam o mesmo em relação aos animais domésticos. Com efeito, ouvimos muitos ditos vazios a favor dos cães fundamentados em que estes são leais, enquanto os gatos seriam traiçoeiros. O que é que isto realmente significa? Onde estão os pontos de referência? Certamento o cão possui tão pouca imaginação ou individualidade que suas motivações são sempre as do seu dono; mas qual intelecto sofisticado detectaria uma virtude nesta estúpida abnegação dos seus direitos inatos? O discernimento certamente deve entregar os louros ao gato, cuja dignidade natural é grande o suficiente para rejeitar qualquer configuração de coisas que não a sua própria e que, consequentemente, não se importa ao mínimo com o que qualquer tolo pensa, deseja ou espera dele. O gato não é traiçoeiro, pois nunca reconheceu aliança de qualquer espécie com outra coisa que não os seus indolentes desejos; e traição implica basicamente em uma quebra de laços explicitamente reconhecidos. O gato é um realista, não um hipócrita. Ele toma o que o agrada quando quer e não faz promessas. Nunca faz-te esperar mais do que ele pode dar, e se escolheres ser um estúpido vitoriano e confundir o seu ronronar e roçar auto- satisfatórios por marcas de um afecto transitivo, a culpa não será dele. Nunca, nem por um momento, fará com que acredites que ele espera alguma outra coisa de tua parte que não comida, abrigo, afeição e entretenimento -- e ele está plenamente justificado em criticar o teu desenvolvimento imaginativo e estético se falhares em considerar sua graça, beleza e influência decorativa como um pagamento mais do que devido por tudo o que lhe dás. Os elurófilos não precisam surpreender-se perante a cinofilia de outrem -- com efeito, ele mesmo pode possuir esta cinofilia; pois os cães são mor das vezes muito atraentes, e tão amáveis quanto um antigo e leal servo o é perante os olhos de seu senhor, de uma maneira condescendente -- mas ele não pode deixar de estarrecer-se com aqueles que não compartilham de seu amor pelos felinos. O gato é um símbolo tão perfeito de beleza e superioridade que é raramente possível que um verdadeiro esteta e cínico civilizado faça outra coisa que não adorá-lo.
Nós nos declaramos o "dono" de um cão -- mas quem teria a audácia de declarar-se o "dono" de um gato? Nós possuímos um cão -- ele esté conosco como escravo e inferior pois é isso o que desejamos que seja. Porém nós entretemos um gato -- ele adorna nosso coração como um convidado, colega de quarto e um igual pois é ele quem deseja estar ali. Não há vantagem em ser o dono cegamente idolatrado de um cão cujo instinto é o de idolatrar, mas é uma enorme distinção e tributo ser escolhido como amigo e confidente de um felino filosófico que é ele próprio o seu senhor e que poderia escolher outra companhia se a encontrasse mais aceitável e interessante. Um traço, creio, desta verdade acerca da maior dignidade do gato passou para o folclore no uso dos nomes "gato" e "cão" como termos de opróbrio. Enquanto "gato" nunca foi aplicado a nenhum tipo de ofensa mais grave do que a fofoca e comentários femininos um tanto maliciosos, manhosos e inócuos, as palavras "cão" e "vira-lata”sempre foram ligadas à vileza, desonra e degradação do pior tipo (2). Na cristalização desta nomenclatura houve sem dúvida na cabeça popular uma vaga e semi-consciente percepção de que há níveis muito baixos de cobardia, adulação e servidão ignóbil aos quais nenhum parente do leão e do leopardo poderia descender. O gato pode ser menosprezado, mas está sempre insubmisso. Ele é, como os Nórdicos dentre os homens, um daqueles que ou governam suas próprias vidas ou perecem.
Apenas uma olhadela analítica é o suficiente para percebermos as vantagens do gato aumentarem. Beleza, provavelmente a única coisa significativa em todo o universo, deve ser nosso principal critério; e aqui o gato triunfa de tal forma que devemos abandonar quaisquer comparações. Alguns cães, sem dúvida, têm beleza em amplo grau; mas mesmo o ponto mais alto da beleza canina está muito aquém da que pertence à média dos felinos. O gato é clássico enquanto o cão é gótico -- em nenhum outro lugar da fauna podemos descobrir esta helênica perfeição na forma, e de anatomia funcional, do que nos felinos. O gato é um templo dórico -- uma colunada iônica -- da mais alta cepa clássica em suas harmonias decorativas e estruturais. E isto não só em seu estado estático, mas também cinético, pois a graça enfeitiçadora da mais breve moção felina não conta com paralelos na arte. O perfeito esteticismo do espreguiçar do bichano, do seu industrioso banho, do seu rolar brincalhão e dos pequenos movimentos involuntários durante o seu sono são algo tão sensível e vital quanto a poesia pastoral ou a pintura de gênero; enquanto a infalível precisão dos seus saltos, da sua corrida e da sua caça têm um valor artístico tão alto quanto, considerados de forma espirituosa; porém é a capacidade dos gatos para o simples ócio e descanso que faz deles tão proeminentes. O Sr. Charles de Vechten, em "Peter Whiffle", sustenta a indolência felina como um modelo de filosofia para a vida, e o Prof. William Lyon Phelps capturou o exato segredo da felinidade quando diz que o gato não apenas se deita mas "derrama o seu corpo sobre o chão como um copo d'água". Que outra criatura combinou o esteticismo da mecânica e da hidráulica? Contrastemos isso ao inepto ofegar, gemer, babar, escavar e, de maneira geral, com toda a torpeza da maioria dos cães com suas emoções gastas e falsas com seus movimentos falsos e supérfluos. 
E nos detalhes higiênicos o exigente gato também está imensuravelmente à frente. Sempre adoramos tocar num gato, mas só os insensíveis dão boas vindas ao desordenado e úmido farejar e patear de um empoeirado e, provavelmente, não inodoro cão, que salta e agita-se e tremula febril por nenhuma outra razão senão o fato de que os seus centros nervosos foram atingidos por estímulos sem sentido. Há um excesso cansativo de más maneiras nesta fúria canina -- pessoas de boa cepa, nós não o destratamos, e invariavelmente achamos o gato muito mais gentil e reservado em seus avanços, e delicado mesmo quando esfrega-se em nosso colo ronronando, ou salta impulsivamente à mesa em que estamos escrevendo para brincar com a caneta em patadas moduladas, ao mesmo tempo sérias e cômicas. Não me estranha que Maomé, o sheik de boas maneiras, tenha amado os gatos pela sua elegância e desprezado os cães por sua rudeza; ou que os gatos sejam favoritos nos países latinos mais polidos enquanto os cães tomam a dianteira na pesada, prática e cervejeira Europa Central. Veja um gato comer, e veja um cão. Aquele está sempre controlado por uma inerente e inescapável fineza, e dota de certa graça um dos mais deselegantes de todos os processos fisiológicos. O cão, por outro lado, é completamente repulsivo em sua bestial e insaciável ganância; assumindo a sua filiação com o lobo de maneira aberta e desavergonhada. Retornando à questão da beleza da linhagem -- não é significativo o fato de muitas crias normais de cães serem francamente admitidas como feias, enquanto não há felino saúdavel e bem desenvolvido, de qualquer espécie, que não possa ser considerado outra coisa que não belo? Há, é claro, muitos gatos feios; mas são sempre casos excepcionais de mestiçagem (3), má nutrição, deformação ou deficiência física. Não há raça saudável de gatos que pode ser pensada como menos do que graciosa -- contra o que contrastamos o espetáculo deprimente de buldogues achatados, dachshunds grotescamente alongados, terriers horrivelmente disformes, e outros. Claro, pode-se dizer que nenhum padrão estético é outra coisa senão relativo -- mas sempre trabalhamos com os nossos padrões habituais, e ao compararmos cães e gatos sob o padrão estético Europeu-Ocidental não há riscos de injustiça. Se uma tribo desconhecida do Tibet achar os terriers lindos e o gato persa feio, não argüiremos com eles em seu próprio território -- mas neste momento estamos lidando conosco e com o nosso terreno, e aqui não pode haver dúvidas, nem do mais ardente cinófilo, acerca do veredito. Alguns se desfazem do problema em um paradoxo epigramático, dizendo "Rex é tão comum, ele é lindo!". Este é o pendor infantil para o grotesco "bonitinho" que vemos corporificado nos desenhos, bonecos e em toda a disforme e inútil decoração do tipo "Krazy Kat" (4) que encontramos nos "lares" e "aconchegos" da plebe que passa por sofisticada.
No tocante à inteligência parece que os cinófilos têm argumentos interessantes -- interessantes pois eles medem de forma inocente o que pensam ser o intelecto de um animal pelo grau da sua subserviência à vontade humana. Um cão irá buscar, um gato não; portanto (sic!) o cão é mais inteligente. Cães podem receber um treinamento mais elaborado do que os felinos para o circo e os atos de vaudeville, portanto (Ó Zeus, Ó Montaria Real!) possuem o cérebro superior. Ora, é claro que isso é o mais puro disparate. Não consideraríamos um homem volúvel mais inteligente do que o cidadão independente porque podemos fazer o primeiro votar em quem mais nos apraz enquanto o outro escapa à nossa influência, mas é incontável o número de pessoas que utilizam um argumento paralelo ao avaliarem a diferenças de matéria cinzenta entre cães e gatos. Competição em servilismo é algo em que nenhum orgulhoso Tomás ou Mimi (5) ousaria participar, e está claro que qualquer estimativa real da inteligência felina e canina deve proceder de uma observação cuidadosa de cãos e gatos em estado natural -- sem qualquer influência humana -- enquanto formulam certos objetivos próprios e utilizam do seu equipamento mental para alcançá-los. Quando assim fazemos, enchemo-nos de respeito pelo nosso ronronante amigo que nos mostra muito pouco dos seus desejos e maneiras de proceder; pois em toda sua concepção e cálculo o gato demonstra uma fria e deliberada união de intelecto, vontade e senso de proporção que envergonha completamente a torpeza emocional e os truques de circo docilmente adquiridos pelo "esperto" e "leal" cão pastor. Veja um gato passar por uma porta, veja quão pacientemente espera sua oportunidade, nunca deixando de lado o seu propósito mesmo quando parece-lhe útil fingir outros interesses neste interim. Veja-o no ápice da caça, e compare sua paciência calculista e o seu cuidadoso estudo de terreno com o torpe mover-se e patear do seu rival canino. Não é comum que o gato volte de mão vazias. Ele sabe o que quer, e quer pegá-lo da melhor maneira possível, mesmo que tenha que sacrificar tempo -- tempo que, filosoficamente, reconhece como desimportante em um universo sem sentido. Não há como demovê-lo ou distrair sua atenção -- entre os homens nós chamamos isto de concentração, a habilidade de seguir o mesmo fio diante de complexas distraçoes, e consideramos como um sinal de vigor intelectual e maturidade. As crianças, os senectos, os camponeses e os cães devaneiam, gatos e filósofos vão direto ao ponto. No quesito adaptabilidade os gatos também são superiores. Os cães podem ser treinados para fazer alguma coisa, mas os psicólogos dizem que estas respostas automáticas a uma memória introjetada não servem como indicadores de inteligência. Para julgar o desenvolvimento abstrato de um cérebro, confronte-o com condições novas e pouco familiares e observe se este é capaz de atingir os seus objetivos com as próprias forças através de raciocínio, sem nenhum manuductio. Nestas condições os gatos elaboram silenciosamente uma dúzia de misteriosas e oportunas alternativas enquanto o pobre Fido está a latir desorientado, tentando atinar com o que se passa. É claro que Rufus apelará mais ao sentimentalismo popular entrando na casa em chamas e salvando o bebê de forma cinematrográfica, mas o fato de que o bigodudo e ronronante Mimi é um organismo biológico superior permanece -- algo fisiológica e psicologicamente mais próximo ao homem justamente pela sua autonomia diante do comando humano, e portanto intitulado a um maior grau de respeito por aqueles que julgam por padrões puramente filosóficos e estéticos. Podemos respeitar um gato e não um cão, não importa qual apele mais ao nosso sentimentalismo; e se procedermos como estetas e analistas e não como amantes do lugar-comum e sentimentalóides, a balança inevitavelmente decidirá a favor do felino.
Podemos dizer, ainda, que mesmo o distante e independente gato não deixa de possuir apelo sentimental. Assim que nos livrarmos da bárbara parcialidade ética -- o preconceito que o aponta como um "traidor" e "horrível devorador de passarinhos" -- encontramos no "inofensivo gato" o ápice do alegre simbolismo doméstico; e os pequenos gatinhos são objetos a serem adorados, idealizados e celebrados nos mais rapsódicos dos dáctilos e anapestos, iâmbicos e trocaicos . Eu, em minha senecta docilidade, confesso uma desrazonada e completamente irrefletida predileção por filhotes muito negros com grandes olhos amarelos, e é tão provável que eu passe por um sem acariciá-lo quanto o é Dr. Johnson passar por um poste em uma calçada sem acertá-lo (6). Há, também, em muitos gatos algo análogo àquele apego recíproco que é tão elogiado nos cães, seres humanos, cavalos e outros. Os gatos associam certas pessoas com atos que contribuem com o seu prazer, e adquirem um reconhecimento e apego que manifesta-se em doce excitação quando estas se fazem presentes -- tragam comida ou não -- e uma certa melancolia quando da sua ausência prolongada. Um gato com quem era afeiçoado chegou ao ponto de não aceitar comida de outra mão que não a minha, e que preferia passar fome a tocar a menor porção de comida nas mãos de um vizinho amigável. Ele também mantinha distintas relações com os outros gatos daquele lar idílico; oferecendo voluntariamente comida a um de seus amigos, mas defendendo selvagemente o seu prato dos relances do seu negro rival, "Bola-de-Neve". Se argumentarem que este apego felino é essencialmente composto de motivos "egoístas" e "práticos", deveremos retorquir inquirindo quantos apegos e afeições humanas, aparte aquelas que brotam diretamente do bruto instinto, possuem outro fundamento qualquer. Assim que a banca apresentar um grande zero como veredito final, estaremos mais preparados para evitar uma censura ingênua ao gato "egoísta".
A abundante vida interior do gato, sua independência superior, é renomada . Um cão é patético, dependente de companheirismo, e completamente perdido exceto quando em matilha ou ladeando o seu dono. Deixe-o sozinho e nada pode fazer exceto ladrar, uivar e deambular até que a exaustão obrigue-o a dormir. Um gato, entretanto, nunca deixa de estar potencialmente satisfeito. Como o homem superior, o gato sabe como ser sozinho e feliz. Uma vez notada a ausência de alguém que o distraia, o gato contenta-se em distrair a si; e ninguém pode dizer que conhece os gatos sem ter espionado o jovial filhote que acredita estar sozinho. Somente depois de ter olhado a graciosa brincadeira com o rabo e o ronronar espontâneo do animal pode alguém entender completamente o feitiço destas linhas que Coleridge escreveu em referência à cria humana e não felina -- página onze
...elfo lépido,
cantando, consigo dançando." (7)
Muitos tomos poderiam ser escritos sobre as brincadeiras dos gatos, já que as variedades e os aspectos estéticos de tais atividades são infinitos. Será suficiente fazer notar que nestes passatempos os gatos exibem traços e ações que psicólogos têm declarado serem motivadas por humor e capricho genuínos; de forma que fazer um gato sorrir talvez não seja tarefa tão impossível, mesmo fora do condado de Cheshire (8). Em suma, um cão é algo incompleto. Como o homem inferior, o cão precisa de estímulos emocionais do exterior, e de algo artifical que valha como um deus e motivo. O gato é perfeito em si. Como o filósofo, ele é uma entidade auto-suficiente, um microcosmo. O gato é um ser real e íntegro porque pensa-se e sente-se como um, enquanto o cão só pode conceber-se em relação à alguma outra coisa. O cão lambe a mão que o chicoteia -babão! Esta besta não concebe a si senão como parte inferior de um organismo do qual tu és a superior -- ela nunca pensaria em revidar, assim como não golpeamos nossas próprias cabeças quando sentimos cefaléia. Porém, fustigue um gato e veja-o recuar sibilando em dignidade e auto-respeito! Outro golpe, e ele revidará; pois é um cavalheiro e teu igual, e não aceitará que infrinjas sua personalidade e privilégios. Ele só está em tua casa pois assim deseja, ou mesmo como um favor condescendente para ti. É a casa, e não a ti, que ele preza; pois filósofos percebem que os seres humanos são, no máximo, pequenos apêndices do ambiente. Passe um pouco da linha e ele o deixará. Confundiste teu relacionamento com ele e pensaste ser o seu dono, e nenhum verdadeiro gato pode tolerar essa violação de etiqueta. A partir de então buscará companheiros de maior discriminação e perspectiva. Deixe os anêmicos que acreditam em "dar a outra face" consolarem-se com os cães -- para o pagão em cujas veias corre o sangue de crepúsculos nórdicos não há outro animal como o gato; intrépida montaria de Freya, que pode encarar a Thor e a Odin com grandes olhos de vivo verde ou amarelo.
Nestas observações acredito ter delineado bastante bem as diversas razões porque, na minha opinião e como põe o título do Sr. de Doren, "cavalheiros preferem gatos". A resposta do Sr. Terhune em uma edição subseqüente da Tribuna (9) parece-me supérflua; é menos uma refutação dos fatos do que a inclusão do seu autor naquela maioria "muito humana" de pessoas que tomam afeições e companheirismo como coisa sérias, desfrutam o sentimento de serem importantes para alguém, condenam um "parasita" fundamentados em idéias práticas sem atentar para o direito do que é belo existir por si mesmo, e, portanto, amam o mais nobre e fiel amigo do homem, o imortal cão. Suponho que o Sr.Terhune ame cavalos e crianças também, pois os três formam, convenientemente unidos, esse credo dos gostos essenciais de todo bom e amável homem que traja Arrow Collar (10) e é formado na escola de heróis de Harold Bell Wright (11), mesmo que o automóvel e Margaret Sanger (12) tenham contribuído muita na redução dos dois últimos itens (13).
Cães, portanto, são camponeses e animais de camponeses, gatos são cavalheiros e animais de cavalheiros. O cão é para aquele que prefere o sentimento cru, a ética inepta e o antropocentrismo à beleza austera e desinteressada; aquele que ama "o povo e o popular" e não censura a torpeza desde que algo se importe realmente com ele. (Retrato de um cão sobre o túmulo do dono - cf. Lanseer, "The Old Shepherd's Chief Mourner." (14) O cara que não é muito apegado às coisas eruditas, mas que é sempre honesto e num (sic) acha o Saddypost ou o N.Y World (15) muito profundos; que não gostava de Valentino, mas que pensa que Doug Fairbanks (16) é a pedida certa para uma noite entretida. Saudável -- prestativo -- não-mórbido -- cívico -- doméstico -- normal -- esse é o tipo que prefere os cães.
O gato é para o aristrocrata -- seja por berço ou inclinação ou ambas -- que admira os seus iguais. O gato é para o homem que aprecia a beleza como a única força viva em um universo cego e sem propósito, e que louva essa beleza em todas as suas formas desconsiderando as ilusões éticas e sentimentais do momento. Para o homem que sabe a insignificância do sentimento e o vazio das aspirações e objetos humanos, e que agarra-se somente ao que é real -- e a beleza é real pois ela apela a um significado para além da emoção que excita e é. Para o homem que sente-se suficiente no cosmos, e renega os escrúpulos do convencional preconceito, ama o repouso, a força, a liberdade, o luxo, a suficiência e a contemplação; para aquele que, como uma destemida alma, deseja algo para respeitar ao invés de algo que lamba-lhe o rosto e aceite sua alternância entre castigo e carinho; para aquele que busca um igual orgulhoso e belo na confraria dos individualistas ao invés do acovardado satélite na hierarquia do medo e da subserviência. O gato não é para o pragmático, arrogante trabalhadorzinho que tem uma tarefa a cumprir, mas para o poeta iluminado e sonhador que sabe que no mundo nada vale a pena ser feito. O diletante -- o connoisseur -- o decadente, em uma era melhor do que esta houve tarefas para estes homens, e então eram arquitetos e líderes daquele tempo pagão e glorioso. O gato é para aquele que age não por um dever vazio, mas por poder, prazer, esplendor, romance e glamour -- para o harpista que canta só, ao anoitecer das antigas batalhas, ou o guerreiro que as combate por beleza, glória, fama e esplendor de uma terra por onde nem mesmo a sombra da fraqueza repousa. Para aquele que não será hipnotizado pela caganifância da utilidade, aquele que demanda para o seu conforto a leveza, a beleza, a ascendência e o cultivo que fazem os esforços valerem a lágrima. Para o homem que sabe que o jogo, e não o trabalho, e o ócio, e não a pressa, são as grandes coisas da vida; e que o círculo de esforçar-se apenas para esforçar-se um pouco mais é uma ironia amarga que a alma civilizada aceita tão pouco quanto pode.
Beleza, suficiência, conforto e boas maneiras -- o que mais requer a civilização? Temos tudo isso no monarca divino que se reclina de maneira gloriosa e confortável em sua almofada sedosa defronte à lareira. Graça e júbilo para si próprio -- orgulho e harmonia e coordenação -- espírito, repouso e completude -- todas elas estão aqui, e necessitam apenas da desilusão para serem adoradas. Que alma seriamente civilizada serviria de outra forma que não como sacerdote de Bastet? O astro do gato, creio, está agora em seu ascendente, enquanto emergimos pouco a pouco dos sonhos éticos e de conformidade que enevoaram o século dezenove e elevaram o torpe cão ao topo do apreço sentimental. Se um renascimento do poder e da beleza haverá de restaurar nossa civilização ocidental, ou se as forças da desintegração já são poderosas demais para serem acorrentadas, ninguém pode dizer, mas no presente momento em que o cinismo desmascara o mundo entreo embusteiro século dezoito e o ominoso mistério das décadas vindouras temos ao menos o relance de um relâmpago da antiga perspectiva pagã e da sua antiga honestidade e clareza.
E o ídolo iluminado por este relâmpago, lobrigado justo e gracioso em seu trono encantado e adornado por seda e ouro sob uma cúpula criselefantina, é uma forma de graça perene nem sempre reconhecida entre os tateantes mortais -- o orgulhoso, o indomado, o misterioso, o luxuoso, o babilônico, o impessoal, o companheiro eterno da superioridade e da arte -- o tipo da beleza perfeita e o irmão da poesia -- o indolente, grave, conformado e patrício -- o gato.

NOTAS
(1) Edwin Henry Lanseer (1802 - 1873) era um pintor célebre por seus retratos de animais.
(2) O autor refere-se ao uso comum das palavras na língua inglesa. No caso do português o argumento de Lovecraft é parcialmente reforçado. Em particular, no português do Brasil, o termo "gato(a)" é usado popularmente em referência à beleza física de alguém. Os termos "cão" e "vira-lata", ainda no português do Brasil, são utilizados como opróbrio. Os dois possuem sentido muito similar ao descrito por Lovecraft. Assim, enquanto, na língua inglesa, para os termos "gato" e "cão" temos valorores, respectivamente, de opróbrio-opróbrio, no português os mesmos termos adquirem valores de encômio-opróbrio, tornando assim desnecessário o argumento atenuante do autor.
(3) No original, "mongrelism". No contexto refere-se ao fenômeno do cruzamento de raças diferentes do mesmo animal, os famosos vira-latas.
(4) Krazy Kat foi uma tira em quadrinhos publicada nos jornais norte-americanos entre 1913 e 1944 .
(5) Nomes comuns para gatos.
(6) Referência a Samuel Johnson (1709 - 1784) autor inglês que sofria de muitos problemas de saúde, dentre eles um caso sério de conjuntivite que quase chegou a cegá-lo.
(7) Versos do poema Christabel, de Samuel Taylor Coleridge
(8) Referência à expressão "he grins like a Cheshire cat" (ele sorri como um gato de Cheshire). Existem diversas lendas sobre sua origem; a mais conhecida parece ser a de que, no Condado de Cheshire, o queijo era moldado na forma do rosto de um gato sorridente. Uma outra versão sugere que os gatos de Cheshire viviam sorrindo devido à abundância de leite no condado, famoso pela produção de laticínios. A expressão se tornou bastante popular devido ao gato sorridente (chamado Cheshire Cat) do livro "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carrol.
(9) N.Y Tribune.
(10) O homem Arrow Collar ficou conhecido pela ilustração publicitária de J.C Leyendecker. O anúncio retratava um homem jovem, vestido para ocasião, com blusa social e colarinho. A imagem exibia o jovem americano do início do século XX como uma figura atlética, confiante e prática. O presidente Roosevelt referiu-se ao retrato como o tipo ideal do "homem comum".
(11) Literato best-seller norte-americano entre os anos 1902 - 1942 cujo nome caiu no esquecimento após a metade do século XX . Suas histórias têm fundo moral. Aos críticos dizia que sua tarefa não era a de realizar literatura, mas pregar ao homem comum.
(12) Margaret Higgins Sanger (1879 - 1966) foi uma ativista norte-americana. Advogava a causa do controle da natalidade e subscrevia um derivado da eugenia, chamado de eugenia negativa, cujo objetivo principal era a erradicação de doenças hereditárias e outras "desvantagens genéticas" através do controle racional da fertilidade.
(13) Isto é: os cavalos e as crianças.
(14) Cf. nota (1) acima.
(15) Jornais da época.
(16) Rudolph Valentino e Douglas Fairbanks eram famosos atores do cinema mudo à época. O primeiro morreu precocemente, causando histeria idólatra.
Eu sempre soube que Lovecraft adorava gatos, mas não tinha idéia do quanto...


Acho que dessa forma ele ficaria bastante feliz com a homenagem que fiz ao batizar o bichano aqui de casa com o nome dele. Esse é o Lovecraft.




 postado originalmente em: Mundo Tentacular











quinta-feira, 14 de junho de 2012

A linguagem como reflexo do imaginário popular





 

"Há uma coisa que me preocupa, e já o disse muitas vezes. Que, enquanto o vocabulário de uma área particular, de um campo profissional técnico, de um ambiente específico, na agricultura, por exemplo, ou na pecuária — enquanto esses vocabulários específicos possuem uma riqueza enorme, tudo o que um homem pode sentir por outra pessoa resume-se — em todas as línguas que conheço — a meia dúzia de palavras. Algumas positivas, como "amizade", "amor", "ternura", "simpatia", "carinho", e outras tantas negativas. Parece-me muito restrito. Eu tenho quatro filhos, já adultos, e os amo de quatro maneiras diferentes. Há uma variedade imensa do amor, e a língua não reflete essa variedade. É uma limitação esquisita. Talvez devida a uma certa desatenção pelos sentimentos, pelos conteúdos anímicos, em contraste com a refinada atenção dedicada às técnicas da agricultura, da medicina... E às mil maneiras de dar um chute numa bola! E isso porque há um interesse especial. Muitas pessoas gostam de futebol e precisam distinguir os diferentes matizes dessa atividade. E, em contraste, o que uma pessoa sente por outra — e é algo mais difícil, sem dúvida — não desperta tanto interesse. Eu fico muito perplexo com este fato."
Julián Marías (filósofo espanhol) em entrevista a Jean Lauand et al., 
[http://www.hottopos.com/videtur8/entrevista.htm]



Ao ler algumas notas proferidas no Seminário Internacional "Os Pecados Capitais na Idade Média" [http://www.pecapi.com.br/], de Setembro de 2004, me deparei com uma questão interessante.


O seminarista discorria sobre o conceito da acídia na visão de Sto. Tomás de Aquino. Termo pouco utilizado, mais comumente entendido dentro do conceito de preguiça (como pecado capital); mas seu significado vai muito além. Em dado momento, chegou-se à análise da variedade de termos de que uma língua dispõe para qualificar um objeto ou analisar determinado assunto. E logo me veio à mente a questão cultural e a importância que a conduta social disseminada tem diante da formação do léxico de uma civilização.






Vejamos por exemplo o Brasil - temos o futebol como paixão nacional. Existe uma infinidade de termos e especificidades para analisar o jogo nos seus mínimos detalhes (impedimento, lateral, escanteio, gol olímpico, intermediária (a até mesmo termos diferentes para a mesma coisa como zaga, defesa, retranca...). A mesma variedade de termos é utilizada para descrever profissões, eventos sociais, emitir opiniões diversas e por aí vai.

Agora quando chegamos no campo da filosofia, na anáise mora das coisas; a carência é alarmante. Peguemos o mais "famoso" dos temas por exemplo - o amor. Quando temos a necessidade de expressar nossos sentimento por alguém, ainda que de diversas formas e situações, nos faltam termos. Dizemos que amamos nossa esposa, nosso filho, nosso irmão, nossa mãe, nosso trabalho, nosso dia de folga, nosso hobby... Agora será que o sentimento que temos por todas essas coisas e pessoas é o mesmo? Seria mesmo adequado resumir em uma única palavra uma variedade tão grande de sentimentos e impressões?



Da mesma forma que dizemos gostar das coisas. Gostamos de assistir um filme, gostamos de ajudar ao próximo (ou não?), gostamos de jogar futebol, gostamos de pasta de manteiga amendoim. Mas assim, da mesma forma? É desnecessário dizer que essa escassez de temos gera frequentes maus-entendidos, quando não confusões maiores; mas o problema não é tão raso.


A questão é que o vocabulário de um povo nasce da necessidade, do uso comum, do que ocupa o seu dia-a-dia. Portanto é tão comum vermos uma precisão tão grande nos termos utilizados para descrever atividades, eventos sociais, vestimentas, condimentos, termos técnicos e afins; e uma pobreza enorme quando se trata de avaliar sentimentos, estados de espírito, condutas morais ou termos análogos. É perturbador que sobrem palavras para se descrever um lance esportivo e nos faltem para que possamos expressar o que sentimos, ou descrever um estado de espírito com alguma riqueza de detalhes.

Ontem conversava sobre liberdade com uma amiga; e é consenso que para que ela exista (a liberdade, não a amiga), aconteça primeiro o auto-conhecimento, a reflexão, o diálogo consigo. Pois é impossível que libertemos o que sequer conhecemos. É nesse ponto que se faz necessária esse tipo de análise. E quanto mais se aprofunda nessa senda, maior é a agonia de perceber o quão raso é nossa preparação para lidar ou mesmo entender o que se passa dentro de nós e ao nosso redor. Tudo aquilo que foge dos holofotes e atravessa as fumaças coloridas do espetáculo nos é apresentado como uma massa incolor, como um ilustre desconhecido; quando na verdade deveria ser nosso melhor e mais íntimo amigo.









 








 "Faltam-nos as palavras, faltam-nos os conceitos, faltam-nos os juízos, falta-nos acesso à realidade. Como tão bem apontou Fernando Pessoa, numa das "Quadras ao gosto popular", para o caso da saudade:
Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm."