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terça-feira, 24 de julho de 2012

Vida intelectual - Raiz, tronco e frutos


Arthur Schopenhauer foi conhecido como o filósofo do pessimismo. Muitos o enxergam como um sujeito que apesar de incrivelmente inteligente, tivesse vivido amargurado e desgostoso com a vida. Eu me pergunto o porque disso ser algo indesejável. Nunca me entrou na cabeça qual a grande vantagem de buscar alegria ou pautar nossos pensamentos e ações por puras emoções, sentimentos ou desejos. Há algo maior a se buscar do que satisfação.

A vida da maioria das pessoas realmente profundas intelectual e espiritualmente que conheço não transcorre da mesma maneira que a maioria das outras. Elas não vivem em busca de nada para si, mas de respostas, de compreensão para questões que os que vivem para si sequer tem consciência ou capacidade de encontrar e decifrar.

Um exemplo de pessoa mundialmente conhecida nos dias de hoje que pode ilustrar o que digo é o ator Keanu Reeves:




Nessa imagem ele é visto num metrô de Nova Iorque, lendo o jornal, como qualquer pessoa. Nada de aviões, helicópteros, ou carros de luxo.

Reeves vem de uma família problemática. A namorada, com quem ele ia se casar, morreu em um acidente de carro. Um dos seus melhores amigos, o também ator River Phoenix, morreu de overdose. E sua irmã teve leucemia. Está curada. E Reeves, então, resolveu doar 70% do que ganhou com o filme “Matrix” para hospitais que tratam dessa doença.

O ator não tem guarda-costas, não usa roupas da moda, mora em um flat e, no fim de 2011, foi visto no metrô de Nova York cedendo o lugar para uma senhora.

Naturalmente que aos olhos da mídia, de outras celebridades e da maioria das pessoas ele deve ser visto como alguém excêntrico, perturbado, talvez até louco. Mas quando indagado sobre seu comportamento, ele se limitou a responder:

“Você precisa ser feliz para viver, eu não.”

Essa declaração causaria um certo choque na mente de qualquer um que tenha a mínima capacidade reflexiva e viva sob a máxima de "aproveitar a vida ao máximo" ou "o que importa é ser feliz".

Acontece que a mente e o espírito de pessoas como Reeves não se satisfazem com as mesmas coisas que as de uma pessoa "normal", ou medíocre. A sensação de comodidade, conforto e o gozo do luxo não bastam para pessoas com espírito elevado. Elas tem a plena convicção de que essas coisas não passam de alentos supérfluos e momentâneos, que não preenchem verdadeiramente as necessidades dos que caminham acima do comum, do ordinário.

É nesse ponto que a enorme sabedoria de lucidez de Arthur Schopenhauer vem à tona. Pessimismo é muito diferente de ser alguém deprimido, que só vê desgraça em tudo, ou como descrevem pateticamente alguns; alguém que "atrai energias" negativas.
Não, ser pessimista na maioria das vezes é ter os pés no chão. É enxergar as coisas como elas são, e não como gostaríamos que elas fossem. É abrir mão de criar um mundo de falsas esperanças e ilusões e aceitar o pior como natural, não como infortúnio ou motivo de decepção ou abalo.

Após a morte do filósofo alemão, foi dito que ele guarvada alguns manuscritos pessoais que ele reuniu ao decorrer dos anos, contendo meditações "destinadas a si mesmo"; trazendo sua filosofia não como pensamentos abstratos, mas como um manual prático para a vida.
Acreditava-se que esses escritos haviam se perdido, ou sido queimados pelo testamentário de Schopenhauer, que alegava tê-los queimado a pedido do próprio filósofo antes de sua morte; mas fragmentos dessa obra apareceram em publicações e livros escritos pelo próprio detentor de seu legado pessoal, anos mais tarde.

Ocorre que os primeiros capítulos do que foi recuperado desse "livro secreto" trata exatamente da forma com que homens de espírito desenvolvido, que dedicaram sua vida à intelectualidade e a busca do que transcende aos sentidos humanos. Ainda que sejam vistos por quase todos como derrotados, foram assim que viveram boa parte dos maiores seres que caminharam por este planeta:

"Querer o menos possível e conhecer o mais possível, eis a máxima que conduziu minha trajetória de vida. Pois a vontade é o que há de mais comum e de pior em nós. Devemos ocultá-la como se faz com a genitália, embora ambos sejam a raiz do nosso ser. Minha vida é heróica e não pode ser avaliada pelo metro do filisteu, ou com o cúbito do merceeiro, muito menos pela medida do homem comum, que não possui outra existência senão a do indivíduo limitada a um curto espaço de tempo. Portanto, não posso me afligir ao pensar que me faltam coisas que fazem parte da trajetória normal de um indivíduo: emprego, casa, jardim, esposa e filho. A existência desses indivíduos transcorre de maneira sempre igual. Já a minha vida, ao contrário, é intelectual, e seu desenvolvimento regular e atividade constante tem de produzir frutos nos poucos anos de pleno poder espiritual e de sua livre utilização, e, assim, por séculos enriquecer a humanidade. Minha vida pessoal é tão-somente a base para a intelectual, a conditio sine qua non, ou seja, algo totalmente secundário. Quanto mais estreita for esta base, tanto mais segura; e se realizar o que deve com relação à minha vida intelectual, terá atingido o seu fim. O instinto, que é próprio a todos aqueles que tem objetivos intelectuais, também se tornou um guia seguro para mim, de forma que deixei de lado os interesses pessoais e tudo concentrei em minha existência espiritual. Por isso também o fato de a trajetória de minha vida parecer desconexa e destituída de plano não pode me surpreender: ela se assemelha ao acompanhamento na harmonia, que igualmente não pode conter em si nexo algum, visto que serve apenas de fundo para a voz principal, na qual se encontra o nexo. As coisas de que necessariamente sou privado em minha vida pessoal me são compensadas de outra maneira, ao longo da vida, pelo pleno gozo do meu espírito e empenho em favor de sua orientação inata; de fato, se as possuísse, não as fruiria, e ser-me-iam até mesmo impeditivas. Para um espírito que doa e realiza por si mesmo aquilo que nenhum outro pode da mesma forma doar e realizar, e que justamente por isso subsiste e perdurará - seria ao mesmo tempo cruel e insano querer forçá-lo a fazer outras coisas, ou mesmo atribuir-lhe tarefas obrigatórias, afastando-o do seu dom natural.


Já nos primeiros anos de minha juventude, notei que enquanto todas as outras pessoas aspiravam a bens exteriores, eu não me dirigi para tais bens, pois trago em mim um tesouro infinitamente mais valioso do que quaisquer bens exteriores; trata-se apenas de desenterrá-lo, para o que as primeiras condições são formação espiritual e ócio total, portanto, independência. A consciência disso, no princípio obscura e vaga, tornou-se, ano após ano, cada vez mais clara e foi suficiente para sempre fazer de mim uma pessoa prudente e parcimoniosa, isto é, para dirigir o meu cuidado para a manutenção de mim mesmo e de minha liberdade e não para algum bem exterior. Indo de encontro à natureza e ao direito humano, tive de abster-me de usar minhas forças em favor de minha pessoa e do fomento de meu bem-estar, para assim empregá-las em prol da humanidade. Meu intelecto não pertenceu a mim, mas ao mundo. A percepção deste estado de exceção e da difícil tarefa dele procedente - viver sem empregar minhas forças para mim mesmo - exerceu contínua pressão sobre o meu ser e tornou ainda mais preocupado e cuidadoso do que já era por natureza. No entanto, levei tudo a bom termo, realizei a tarefa, cumpri minha missão.


Comparada à importância do indivíduo, a importância do homem intelectualmente imortal tornou-se em mim algo tão infinitamente grande, que eu, embora me sobrecarregasse com tantas preocupações pessoais, logo as deixava passar e desaparecer, assim que um pensamento filosófico se anunciava. Pois tal pensamento sempre era para mim a coisa mais séria, o resto, ao contrário, mero passatempo. Esse é o título de nobreza e a carta de alforria da natureza. A felicidade do homem ordinário reside na alternância entre trabalho e prazer: para mim, ao contrário, ambos são uma coisa só. Eis por que a vida de homens de minha espécie é necessariamente um monodrama. Missionários da verdade a ser transmitida ao gênero humano, como eu, após terem se reconhecido como tais, pouco terão em comum com as pessoas, exceto por sua própria missão, assim como os missionários na China que não se confraternizam com os chineses. Em todas as situações da vida em sociedade, um homem como eu, sobretudo na juventude, sente-se continuamente como alguém que usa roupas que não lhe servem."




Arthur Schopenhauer
























"Devemos viver sem nenhum arrependimento.

E ser mais livres que qualquer um..."


Portgas D. Ace



quarta-feira, 4 de julho de 2012

Cães e gatos - por H. P. Lovecraft

Traduzido por Vinícius M.R de Carvalho e Victor Galdino


GATOS E CÃES
por H.P. Lovecraft
 


Tendo tomado conhecimento da briga entre cães e gatos que está para ocorrer em teu clube literário, não pude resistir ao ímpeto de contribuir com alguns uivos e sibilantes de minha parte na contenda, ainda que consciente que as palavras de um venerável ex-membro mal possam pesar contra o brilhantismo dos ainda ativos aderentes que venham a ladrar do outro lado. Ciente de minha inaptidão para o argumento, um correspondente que prezo supriu-me com os registros de uma controvérsia similar na Tribuna de Nova Iorque, onde o Sr. Carl van Doren toma o meu lado e o Sr. Albert Payson Terhune toma o da tribo dos cães. Destes eu esperava plagiar os dados que precissase; mas meu amigo, em sua sutileza genuinamente maquiavélica, proveu-me apenas com uma parte da seção sobre os felinos enquanto o relatório canino veio-me às mãos na íntegra. Sem dúvida ele imaginava que deste modo, considerada minha parcialidade, promoveria algo como uma justiça definitiva, mas para mim é excessivamente inconveniente, já que vai forçar-me a ser mais ou menos original nas considerações seguintes.
Entre cães e gatos meu grau de preferência é tão grande que nunca me ocorreria compará-los. Não possuo nenhuma antipatia especial contra os cães, como não possuo contra macacos, seres humanos, comerciantes, vacas, ovelhas ou pterodáctilos; mas pelo gato sempre cultivei um respeito e afeto particulares desde os meus primeiros dias de infância . Em sua elegância impecável e superior auto-suficiência vi um símbolo da beleza perfeita e da impessoalidade do próprio universo considerado objetivamente, e em seu ar de silencioso mistério reside para mim toda a maravilha e o fascínio do desconhecido. O cão apela à emoções simplistas e inferiores; o gato, às fontes mais profundas da imaginação e da percepção cósmica da mente humana. Não é coincidência que os contemplativos egípcios, além de espíritos poéticos como Poe, Gautier, Baudelaire e Swinburne , eram todos adoradores do ágil felino.
Naturalmente, a preferência de alguém por cães ou gatos depende completamente de seu temperamento e ponto de vista. Para mim o cão é o favorito dos indivíduos superficiais, sentimentais e emocionais - pessoas que sentem mais do pensam, que atribuem importância à humanidade e às convenções populares do vulgo, e que encontram o seu maior consolo na adulação e dependência mútua que dão forma à vida gregária. Tais pessoas vivem em um mundo limitado e imaginário; aceitando acriticamente os valores do folclore comum, e sempre preferindo ter suas crenças, sentimentos e preconceitos estimados, a desfrutar de um puro prazer filosófico e estético que surge do reconhecimento e contemplação da austera e absoluta beleza. Isto não é dizer que este caráter não reside, também, no amor aos felinos da elurofilia vulgar, apenas que nesta existe um fundamento de verdadeiro esteticismo que a cinofilia não possui. O verdadeiro amante de gatos é aquele que demanda ajustamentos ao universo mais claros do que a placidez da vida doméstica costuma prover; é aquele que recusa-se a engolir a noção sentimentalóide de que todas as pessoas boas amam os cães, as crianças e os cavalos enquanto as pessoas más desgostam e são desgostados por estes. O amante dos felinos não está disposto a declarar-se a si e a seus sentimentos simples como a medida de todos os valores, ou deixar que vãs noções éticas venham a distorcer o seu juízo. Em outras palavras, ele está mais disposto a admirar e respeitar do que exibir e mimar; e não é presa da falácia que diz que sociabilidade e empatia sem sentido, ou devoção escrava e obediência, constituem algo que deve ser intrinsicamente admirado ou exaltado. Os que amam os cães justificam-se nestas qualidades comuns, servis e plebéias, e julgam a inteligência de um animal de estimação pelo grau de conformidade deste com os seus desejos. Amantes de felinos escapam desta ilusão repudiando a idéia de que subserviência e capangagem demonstradas ao homem constituem algum mérito, os amantes de gatos sentem-se livres para prezar a independência aristocrática, o auto-respeito e a personalidade individual, unidas à elegância e beleza, tipificadas por este frio, ágil, cínico e auto-suficiente senhor dos telhados.
Pessoas de idéias rasas -- a classe média citadina desprovida de imaginação, satisfeita com a rotina e que subscreve o credo popular dos valores sentimentais -- serão sempre amantes de cães. Para eles nada será mais importante do que eles próprios e os seus sentimentos primitivos, e nunca deixarão de estimar e glorificar o animal que melhor tipifica estes. Tais pessoas estão submersas no vórtice do idealismo e subserviência orientais que arruinaram a civilização clássica na Idade das Trevas, e vivem em um mundo plano de valores sentimentais abstratos onde as suas insípidas ilusões de submissão, gentileza, irmandade e humildade são engrandecidas como virtudes, e filosofia e ética falsas são erigidas sobre as pequenas reações de músculos flexores. Esta herança, ironicamente impingida sobre nós quando a política romana elevou a fé de um povo em estilhaços à supremacia durante o império de Constantino, permaneceu como um punho firme a agarrar os fracos e sentimentalóides; e talvez tenha alcançado o seu platô no insípido século dezenove, onde as pessoas passaram a prezar os cães por "serem tão humanos" (como se a humanidade fosse algum padrão merecedor de mérito!), e o honesto Edwin Landseer (1) pintou centenas de Fidos jactantes e Rex e Totós com toda a trivialidade antropóide, mesquinha e "graciosa" dos vitorianos eminentes.
Mas dentre o caos da prostração intelectual e emocional alguns espíritos livres sempre apareceram para as antigas realidades civilizadas que o medievalismo eclipsou -- a clássica e inexorável lealdade à verdade, à força e à beleza presentearam com uma mente lúcida e um espírito insubmisso ao Ariano Ocidental confrontado com a majestade, o deleite e a impavidez da Natureza. Esta é a estética viril e a ética dos músculos extensores -- as bravas e resistentes crenças e preferências de orgulhosos, dominantes, invictos e corajosos conquistadores, caçadores e guerreiros -- e faz ela pouco uso das dissimulações e pusilanimidade dos gregários, dos pacifistas, covardes e sentimentalóides. Beleza e suficiência -- duas qualidades do próprio cósmos -- são os deuses deste tipo pagão que desconhece cadenas; para o adorador de tais coisas eternas a suprema virtude não pode ser encontrada na baixeza, na obediência, no apego e na pieguice. Este devoto buscará aquilo que melhor encarna o deleite das estrelas e dos mundos e das florestas e dos mares e dos sóis que se põem, e que melhor representa a indolente, assenhorada, acurada, auto-suficiente, cruel, independente, altiva e caprichosa impessoalidade daquela que tudo governa, a Natureza. Beleza -- calma -- indolência -- repouso filosófico -- auto-suficiência -- mestria indomada -- onde mais podemos encontrar estas coisas encarnadas e mesmo metade da perfeição e completude que marcam o seu aparecimento no incomparáve e suavemente furtivo gato, que perfaz a sua misteriosa órbita com a incansável certeza de um planeta em meio ao infinito?
Que o cão é caro aos das classes camponesa e média desprovidos de imaginação enquanto o gato apela ao sensível poeta-aristocrata-filósofo ficará claro no momento em que refletirmos sobre a questão da associação biológica. A plebe prática julga uma coisa pelo seu tato, sabor e cheiro imediatos; enquanto tipos mais delicados formam suas estimativas pela associação de imagens e idéias que o objeto evoca às suas mentes. Quando se trata de cães e gatos, o peão insensível vê apenas dois animais diante de si, fundamentando sua preferência na capacidade relativa de cada um deles em suprir as suas pobres e uniformes idéias sobre a ética, a amizade e a subserviência. Entretanto, o gentleman e o pensador vêem cada um em suas filiações naturais e não podem deixar de perceber que nas grandes simetrias da vida orgânica os cães encaixam-se junto aos mal-arranjados lobos, raposas, chacais, coiotes, dingos e hienas; enquanto os gatos ladeiam os senhores da selva em suas marchas, o orgulhoso leão, o sinuoso guepardo, o magnífico tigre e a formosa pantera. Cães são os hieróglifos da emoção cega, inferioridade, apego servil e gregaridade -- atributos de homens medianos, estupidamente passionais e subdesenvolvidos em suas capacidades intelectuais e imaginativas. Gatos são as runas da beleza, invencibilidade, maravilhamento, orgulho, liberdade, frieza, auto-suficiência e refinada individualidade -- qualidades de homens sensíveis, esclarecidos, mentalmente cultivados, pagãos, cínicos, poéticos, filosóficos, desapegados, reservados, independentes, nietzscheanos, indomados, civilizados e nobres. O cão é um camponês e o gato é um cavalheiro.
Podemos julgar o tom e as preferências de uma civilização pelas suas atitudes em relação aos cães e aos gatos. O orgulhoso Egito, onde o Faraó era Faraó e as pirâmides erguiam-se belas conforme o desejo daquele que as concebeu, curvava-se ao gato, e templos eram erguidos à sua deusa em Bubaste. Na Roma imperial o gracioso leopardo adornava as melhores casas, sentado no átrio, sua beleza insolente e sua coleira e cadenas douradas; ainda, após a era dos Antoninos o gato foi importado do Egito e celebrado como raro e custoso luxo. Assim foram os povos dominantes e esclarecidos. Quando, porém, olhamos para a prostrada Idade Média com as suas superstições e êxtases e pietismo e ladainhas acerca dos santos e suas relíquias encontramos pouca consideração às feições calmas e impessoais dos felinos; e observamos um triste espetáculo de ódio e crueldade contra a bela criaturinha cujas virtudes foram o suficiente para que sofresse entre os peões ignorantes que ressentiam sua orgulhosa frieza e temiam sua críptica e elusiva independência como algo similar aos poderes tenebrosos da bruxaria. Estes rudes escravos do misticismo oriental não podiam tolerar o que não servia às suas próprias emoções fáceis nem aos seus tacanhos propósitos. Queriam um cão para babar, caçar e realizar tarefas servis e não encontravam alimento espiritual no regalo felino que é a beleza desinteressada. Podemos imaginar como devem ter ressentido o felino: seu magnificente repouso, tranquilidade e desdém para com as triviais preocupações e intenções humanas. Jogue um pau, o cão servil baba, transpira e tropeça para devolvê-lo. Faça o mesmo perante um gato, e ele o olhará com polidez e com um entretido aborrecimento. Assim como pessoas inferiores preferem o animal inferior que corre excitado quando outrem precisa d'algo, também as pessoas superiores respeitam o animal superior que vive sua própria vida e sabe que as pueris brincadeiras de pega-e-traz dos estranhos bípedes não lhe dizem respeito nem são dignos de sua atenção. O cão late, implora e cai quando bates o látego. Isto é prazeroso ao camponês que ama a submissão e deseja sempre um estímulo à sua auto-importância. O gato, entretanto, convence-te a brincar em seu benefício quando quer entreter-se; fazendo-te correr pela sala com um naco de papel na ponta de um barbante quando quer exercitar-se mas recusando todas as tentativas de fazê-lo brincar quando não disposto do humor. Isto é personalidade, individualidade e auto-respeito -- a calma mestria de um ser cuja vida é dele e não sua -- e o indivíduo superior reconhece e aprecia isto pois é ele também um espírito livre cuja posição está assegurada, cuja única lei é sua própria herança e senso estético. Tudo considerado, vemos que o cão apela à essas almas primitivas e emocionais cujas principais demandas ao universo são afeição sem sentido, compaixão inútil e aduladora subserviência; enquanto o gato reina entre aqueles espíritos mais contemplativos e visionários que pedem do universo tão-somente a visão objetiva de tocante, etérea beleza e o simbolismo vivo da imperturbada, persistente, repousada e impessoal ordem e suficiência da Natureza. O cão dá, o gato é.
Pessoas simplórias sempre sobrestimam o elemento ético na vida, e é bastante natural que façam o mesmo em relação aos animais domésticos. Com efeito, ouvimos muitos ditos vazios a favor dos cães fundamentados em que estes são leais, enquanto os gatos seriam traiçoeiros. O que é que isto realmente significa? Onde estão os pontos de referência? Certamento o cão possui tão pouca imaginação ou individualidade que suas motivações são sempre as do seu dono; mas qual intelecto sofisticado detectaria uma virtude nesta estúpida abnegação dos seus direitos inatos? O discernimento certamente deve entregar os louros ao gato, cuja dignidade natural é grande o suficiente para rejeitar qualquer configuração de coisas que não a sua própria e que, consequentemente, não se importa ao mínimo com o que qualquer tolo pensa, deseja ou espera dele. O gato não é traiçoeiro, pois nunca reconheceu aliança de qualquer espécie com outra coisa que não os seus indolentes desejos; e traição implica basicamente em uma quebra de laços explicitamente reconhecidos. O gato é um realista, não um hipócrita. Ele toma o que o agrada quando quer e não faz promessas. Nunca faz-te esperar mais do que ele pode dar, e se escolheres ser um estúpido vitoriano e confundir o seu ronronar e roçar auto- satisfatórios por marcas de um afecto transitivo, a culpa não será dele. Nunca, nem por um momento, fará com que acredites que ele espera alguma outra coisa de tua parte que não comida, abrigo, afeição e entretenimento -- e ele está plenamente justificado em criticar o teu desenvolvimento imaginativo e estético se falhares em considerar sua graça, beleza e influência decorativa como um pagamento mais do que devido por tudo o que lhe dás. Os elurófilos não precisam surpreender-se perante a cinofilia de outrem -- com efeito, ele mesmo pode possuir esta cinofilia; pois os cães são mor das vezes muito atraentes, e tão amáveis quanto um antigo e leal servo o é perante os olhos de seu senhor, de uma maneira condescendente -- mas ele não pode deixar de estarrecer-se com aqueles que não compartilham de seu amor pelos felinos. O gato é um símbolo tão perfeito de beleza e superioridade que é raramente possível que um verdadeiro esteta e cínico civilizado faça outra coisa que não adorá-lo.
Nós nos declaramos o "dono" de um cão -- mas quem teria a audácia de declarar-se o "dono" de um gato? Nós possuímos um cão -- ele esté conosco como escravo e inferior pois é isso o que desejamos que seja. Porém nós entretemos um gato -- ele adorna nosso coração como um convidado, colega de quarto e um igual pois é ele quem deseja estar ali. Não há vantagem em ser o dono cegamente idolatrado de um cão cujo instinto é o de idolatrar, mas é uma enorme distinção e tributo ser escolhido como amigo e confidente de um felino filosófico que é ele próprio o seu senhor e que poderia escolher outra companhia se a encontrasse mais aceitável e interessante. Um traço, creio, desta verdade acerca da maior dignidade do gato passou para o folclore no uso dos nomes "gato" e "cão" como termos de opróbrio. Enquanto "gato" nunca foi aplicado a nenhum tipo de ofensa mais grave do que a fofoca e comentários femininos um tanto maliciosos, manhosos e inócuos, as palavras "cão" e "vira-lata”sempre foram ligadas à vileza, desonra e degradação do pior tipo (2). Na cristalização desta nomenclatura houve sem dúvida na cabeça popular uma vaga e semi-consciente percepção de que há níveis muito baixos de cobardia, adulação e servidão ignóbil aos quais nenhum parente do leão e do leopardo poderia descender. O gato pode ser menosprezado, mas está sempre insubmisso. Ele é, como os Nórdicos dentre os homens, um daqueles que ou governam suas próprias vidas ou perecem.
Apenas uma olhadela analítica é o suficiente para percebermos as vantagens do gato aumentarem. Beleza, provavelmente a única coisa significativa em todo o universo, deve ser nosso principal critério; e aqui o gato triunfa de tal forma que devemos abandonar quaisquer comparações. Alguns cães, sem dúvida, têm beleza em amplo grau; mas mesmo o ponto mais alto da beleza canina está muito aquém da que pertence à média dos felinos. O gato é clássico enquanto o cão é gótico -- em nenhum outro lugar da fauna podemos descobrir esta helênica perfeição na forma, e de anatomia funcional, do que nos felinos. O gato é um templo dórico -- uma colunada iônica -- da mais alta cepa clássica em suas harmonias decorativas e estruturais. E isto não só em seu estado estático, mas também cinético, pois a graça enfeitiçadora da mais breve moção felina não conta com paralelos na arte. O perfeito esteticismo do espreguiçar do bichano, do seu industrioso banho, do seu rolar brincalhão e dos pequenos movimentos involuntários durante o seu sono são algo tão sensível e vital quanto a poesia pastoral ou a pintura de gênero; enquanto a infalível precisão dos seus saltos, da sua corrida e da sua caça têm um valor artístico tão alto quanto, considerados de forma espirituosa; porém é a capacidade dos gatos para o simples ócio e descanso que faz deles tão proeminentes. O Sr. Charles de Vechten, em "Peter Whiffle", sustenta a indolência felina como um modelo de filosofia para a vida, e o Prof. William Lyon Phelps capturou o exato segredo da felinidade quando diz que o gato não apenas se deita mas "derrama o seu corpo sobre o chão como um copo d'água". Que outra criatura combinou o esteticismo da mecânica e da hidráulica? Contrastemos isso ao inepto ofegar, gemer, babar, escavar e, de maneira geral, com toda a torpeza da maioria dos cães com suas emoções gastas e falsas com seus movimentos falsos e supérfluos. 
E nos detalhes higiênicos o exigente gato também está imensuravelmente à frente. Sempre adoramos tocar num gato, mas só os insensíveis dão boas vindas ao desordenado e úmido farejar e patear de um empoeirado e, provavelmente, não inodoro cão, que salta e agita-se e tremula febril por nenhuma outra razão senão o fato de que os seus centros nervosos foram atingidos por estímulos sem sentido. Há um excesso cansativo de más maneiras nesta fúria canina -- pessoas de boa cepa, nós não o destratamos, e invariavelmente achamos o gato muito mais gentil e reservado em seus avanços, e delicado mesmo quando esfrega-se em nosso colo ronronando, ou salta impulsivamente à mesa em que estamos escrevendo para brincar com a caneta em patadas moduladas, ao mesmo tempo sérias e cômicas. Não me estranha que Maomé, o sheik de boas maneiras, tenha amado os gatos pela sua elegância e desprezado os cães por sua rudeza; ou que os gatos sejam favoritos nos países latinos mais polidos enquanto os cães tomam a dianteira na pesada, prática e cervejeira Europa Central. Veja um gato comer, e veja um cão. Aquele está sempre controlado por uma inerente e inescapável fineza, e dota de certa graça um dos mais deselegantes de todos os processos fisiológicos. O cão, por outro lado, é completamente repulsivo em sua bestial e insaciável ganância; assumindo a sua filiação com o lobo de maneira aberta e desavergonhada. Retornando à questão da beleza da linhagem -- não é significativo o fato de muitas crias normais de cães serem francamente admitidas como feias, enquanto não há felino saúdavel e bem desenvolvido, de qualquer espécie, que não possa ser considerado outra coisa que não belo? Há, é claro, muitos gatos feios; mas são sempre casos excepcionais de mestiçagem (3), má nutrição, deformação ou deficiência física. Não há raça saudável de gatos que pode ser pensada como menos do que graciosa -- contra o que contrastamos o espetáculo deprimente de buldogues achatados, dachshunds grotescamente alongados, terriers horrivelmente disformes, e outros. Claro, pode-se dizer que nenhum padrão estético é outra coisa senão relativo -- mas sempre trabalhamos com os nossos padrões habituais, e ao compararmos cães e gatos sob o padrão estético Europeu-Ocidental não há riscos de injustiça. Se uma tribo desconhecida do Tibet achar os terriers lindos e o gato persa feio, não argüiremos com eles em seu próprio território -- mas neste momento estamos lidando conosco e com o nosso terreno, e aqui não pode haver dúvidas, nem do mais ardente cinófilo, acerca do veredito. Alguns se desfazem do problema em um paradoxo epigramático, dizendo "Rex é tão comum, ele é lindo!". Este é o pendor infantil para o grotesco "bonitinho" que vemos corporificado nos desenhos, bonecos e em toda a disforme e inútil decoração do tipo "Krazy Kat" (4) que encontramos nos "lares" e "aconchegos" da plebe que passa por sofisticada.
No tocante à inteligência parece que os cinófilos têm argumentos interessantes -- interessantes pois eles medem de forma inocente o que pensam ser o intelecto de um animal pelo grau da sua subserviência à vontade humana. Um cão irá buscar, um gato não; portanto (sic!) o cão é mais inteligente. Cães podem receber um treinamento mais elaborado do que os felinos para o circo e os atos de vaudeville, portanto (Ó Zeus, Ó Montaria Real!) possuem o cérebro superior. Ora, é claro que isso é o mais puro disparate. Não consideraríamos um homem volúvel mais inteligente do que o cidadão independente porque podemos fazer o primeiro votar em quem mais nos apraz enquanto o outro escapa à nossa influência, mas é incontável o número de pessoas que utilizam um argumento paralelo ao avaliarem a diferenças de matéria cinzenta entre cães e gatos. Competição em servilismo é algo em que nenhum orgulhoso Tomás ou Mimi (5) ousaria participar, e está claro que qualquer estimativa real da inteligência felina e canina deve proceder de uma observação cuidadosa de cãos e gatos em estado natural -- sem qualquer influência humana -- enquanto formulam certos objetivos próprios e utilizam do seu equipamento mental para alcançá-los. Quando assim fazemos, enchemo-nos de respeito pelo nosso ronronante amigo que nos mostra muito pouco dos seus desejos e maneiras de proceder; pois em toda sua concepção e cálculo o gato demonstra uma fria e deliberada união de intelecto, vontade e senso de proporção que envergonha completamente a torpeza emocional e os truques de circo docilmente adquiridos pelo "esperto" e "leal" cão pastor. Veja um gato passar por uma porta, veja quão pacientemente espera sua oportunidade, nunca deixando de lado o seu propósito mesmo quando parece-lhe útil fingir outros interesses neste interim. Veja-o no ápice da caça, e compare sua paciência calculista e o seu cuidadoso estudo de terreno com o torpe mover-se e patear do seu rival canino. Não é comum que o gato volte de mão vazias. Ele sabe o que quer, e quer pegá-lo da melhor maneira possível, mesmo que tenha que sacrificar tempo -- tempo que, filosoficamente, reconhece como desimportante em um universo sem sentido. Não há como demovê-lo ou distrair sua atenção -- entre os homens nós chamamos isto de concentração, a habilidade de seguir o mesmo fio diante de complexas distraçoes, e consideramos como um sinal de vigor intelectual e maturidade. As crianças, os senectos, os camponeses e os cães devaneiam, gatos e filósofos vão direto ao ponto. No quesito adaptabilidade os gatos também são superiores. Os cães podem ser treinados para fazer alguma coisa, mas os psicólogos dizem que estas respostas automáticas a uma memória introjetada não servem como indicadores de inteligência. Para julgar o desenvolvimento abstrato de um cérebro, confronte-o com condições novas e pouco familiares e observe se este é capaz de atingir os seus objetivos com as próprias forças através de raciocínio, sem nenhum manuductio. Nestas condições os gatos elaboram silenciosamente uma dúzia de misteriosas e oportunas alternativas enquanto o pobre Fido está a latir desorientado, tentando atinar com o que se passa. É claro que Rufus apelará mais ao sentimentalismo popular entrando na casa em chamas e salvando o bebê de forma cinematrográfica, mas o fato de que o bigodudo e ronronante Mimi é um organismo biológico superior permanece -- algo fisiológica e psicologicamente mais próximo ao homem justamente pela sua autonomia diante do comando humano, e portanto intitulado a um maior grau de respeito por aqueles que julgam por padrões puramente filosóficos e estéticos. Podemos respeitar um gato e não um cão, não importa qual apele mais ao nosso sentimentalismo; e se procedermos como estetas e analistas e não como amantes do lugar-comum e sentimentalóides, a balança inevitavelmente decidirá a favor do felino.
Podemos dizer, ainda, que mesmo o distante e independente gato não deixa de possuir apelo sentimental. Assim que nos livrarmos da bárbara parcialidade ética -- o preconceito que o aponta como um "traidor" e "horrível devorador de passarinhos" -- encontramos no "inofensivo gato" o ápice do alegre simbolismo doméstico; e os pequenos gatinhos são objetos a serem adorados, idealizados e celebrados nos mais rapsódicos dos dáctilos e anapestos, iâmbicos e trocaicos . Eu, em minha senecta docilidade, confesso uma desrazonada e completamente irrefletida predileção por filhotes muito negros com grandes olhos amarelos, e é tão provável que eu passe por um sem acariciá-lo quanto o é Dr. Johnson passar por um poste em uma calçada sem acertá-lo (6). Há, também, em muitos gatos algo análogo àquele apego recíproco que é tão elogiado nos cães, seres humanos, cavalos e outros. Os gatos associam certas pessoas com atos que contribuem com o seu prazer, e adquirem um reconhecimento e apego que manifesta-se em doce excitação quando estas se fazem presentes -- tragam comida ou não -- e uma certa melancolia quando da sua ausência prolongada. Um gato com quem era afeiçoado chegou ao ponto de não aceitar comida de outra mão que não a minha, e que preferia passar fome a tocar a menor porção de comida nas mãos de um vizinho amigável. Ele também mantinha distintas relações com os outros gatos daquele lar idílico; oferecendo voluntariamente comida a um de seus amigos, mas defendendo selvagemente o seu prato dos relances do seu negro rival, "Bola-de-Neve". Se argumentarem que este apego felino é essencialmente composto de motivos "egoístas" e "práticos", deveremos retorquir inquirindo quantos apegos e afeições humanas, aparte aquelas que brotam diretamente do bruto instinto, possuem outro fundamento qualquer. Assim que a banca apresentar um grande zero como veredito final, estaremos mais preparados para evitar uma censura ingênua ao gato "egoísta".
A abundante vida interior do gato, sua independência superior, é renomada . Um cão é patético, dependente de companheirismo, e completamente perdido exceto quando em matilha ou ladeando o seu dono. Deixe-o sozinho e nada pode fazer exceto ladrar, uivar e deambular até que a exaustão obrigue-o a dormir. Um gato, entretanto, nunca deixa de estar potencialmente satisfeito. Como o homem superior, o gato sabe como ser sozinho e feliz. Uma vez notada a ausência de alguém que o distraia, o gato contenta-se em distrair a si; e ninguém pode dizer que conhece os gatos sem ter espionado o jovial filhote que acredita estar sozinho. Somente depois de ter olhado a graciosa brincadeira com o rabo e o ronronar espontâneo do animal pode alguém entender completamente o feitiço destas linhas que Coleridge escreveu em referência à cria humana e não felina -- página onze
...elfo lépido,
cantando, consigo dançando." (7)
Muitos tomos poderiam ser escritos sobre as brincadeiras dos gatos, já que as variedades e os aspectos estéticos de tais atividades são infinitos. Será suficiente fazer notar que nestes passatempos os gatos exibem traços e ações que psicólogos têm declarado serem motivadas por humor e capricho genuínos; de forma que fazer um gato sorrir talvez não seja tarefa tão impossível, mesmo fora do condado de Cheshire (8). Em suma, um cão é algo incompleto. Como o homem inferior, o cão precisa de estímulos emocionais do exterior, e de algo artifical que valha como um deus e motivo. O gato é perfeito em si. Como o filósofo, ele é uma entidade auto-suficiente, um microcosmo. O gato é um ser real e íntegro porque pensa-se e sente-se como um, enquanto o cão só pode conceber-se em relação à alguma outra coisa. O cão lambe a mão que o chicoteia -babão! Esta besta não concebe a si senão como parte inferior de um organismo do qual tu és a superior -- ela nunca pensaria em revidar, assim como não golpeamos nossas próprias cabeças quando sentimos cefaléia. Porém, fustigue um gato e veja-o recuar sibilando em dignidade e auto-respeito! Outro golpe, e ele revidará; pois é um cavalheiro e teu igual, e não aceitará que infrinjas sua personalidade e privilégios. Ele só está em tua casa pois assim deseja, ou mesmo como um favor condescendente para ti. É a casa, e não a ti, que ele preza; pois filósofos percebem que os seres humanos são, no máximo, pequenos apêndices do ambiente. Passe um pouco da linha e ele o deixará. Confundiste teu relacionamento com ele e pensaste ser o seu dono, e nenhum verdadeiro gato pode tolerar essa violação de etiqueta. A partir de então buscará companheiros de maior discriminação e perspectiva. Deixe os anêmicos que acreditam em "dar a outra face" consolarem-se com os cães -- para o pagão em cujas veias corre o sangue de crepúsculos nórdicos não há outro animal como o gato; intrépida montaria de Freya, que pode encarar a Thor e a Odin com grandes olhos de vivo verde ou amarelo.
Nestas observações acredito ter delineado bastante bem as diversas razões porque, na minha opinião e como põe o título do Sr. de Doren, "cavalheiros preferem gatos". A resposta do Sr. Terhune em uma edição subseqüente da Tribuna (9) parece-me supérflua; é menos uma refutação dos fatos do que a inclusão do seu autor naquela maioria "muito humana" de pessoas que tomam afeições e companheirismo como coisa sérias, desfrutam o sentimento de serem importantes para alguém, condenam um "parasita" fundamentados em idéias práticas sem atentar para o direito do que é belo existir por si mesmo, e, portanto, amam o mais nobre e fiel amigo do homem, o imortal cão. Suponho que o Sr.Terhune ame cavalos e crianças também, pois os três formam, convenientemente unidos, esse credo dos gostos essenciais de todo bom e amável homem que traja Arrow Collar (10) e é formado na escola de heróis de Harold Bell Wright (11), mesmo que o automóvel e Margaret Sanger (12) tenham contribuído muita na redução dos dois últimos itens (13).
Cães, portanto, são camponeses e animais de camponeses, gatos são cavalheiros e animais de cavalheiros. O cão é para aquele que prefere o sentimento cru, a ética inepta e o antropocentrismo à beleza austera e desinteressada; aquele que ama "o povo e o popular" e não censura a torpeza desde que algo se importe realmente com ele. (Retrato de um cão sobre o túmulo do dono - cf. Lanseer, "The Old Shepherd's Chief Mourner." (14) O cara que não é muito apegado às coisas eruditas, mas que é sempre honesto e num (sic) acha o Saddypost ou o N.Y World (15) muito profundos; que não gostava de Valentino, mas que pensa que Doug Fairbanks (16) é a pedida certa para uma noite entretida. Saudável -- prestativo -- não-mórbido -- cívico -- doméstico -- normal -- esse é o tipo que prefere os cães.
O gato é para o aristrocrata -- seja por berço ou inclinação ou ambas -- que admira os seus iguais. O gato é para o homem que aprecia a beleza como a única força viva em um universo cego e sem propósito, e que louva essa beleza em todas as suas formas desconsiderando as ilusões éticas e sentimentais do momento. Para o homem que sabe a insignificância do sentimento e o vazio das aspirações e objetos humanos, e que agarra-se somente ao que é real -- e a beleza é real pois ela apela a um significado para além da emoção que excita e é. Para o homem que sente-se suficiente no cosmos, e renega os escrúpulos do convencional preconceito, ama o repouso, a força, a liberdade, o luxo, a suficiência e a contemplação; para aquele que, como uma destemida alma, deseja algo para respeitar ao invés de algo que lamba-lhe o rosto e aceite sua alternância entre castigo e carinho; para aquele que busca um igual orgulhoso e belo na confraria dos individualistas ao invés do acovardado satélite na hierarquia do medo e da subserviência. O gato não é para o pragmático, arrogante trabalhadorzinho que tem uma tarefa a cumprir, mas para o poeta iluminado e sonhador que sabe que no mundo nada vale a pena ser feito. O diletante -- o connoisseur -- o decadente, em uma era melhor do que esta houve tarefas para estes homens, e então eram arquitetos e líderes daquele tempo pagão e glorioso. O gato é para aquele que age não por um dever vazio, mas por poder, prazer, esplendor, romance e glamour -- para o harpista que canta só, ao anoitecer das antigas batalhas, ou o guerreiro que as combate por beleza, glória, fama e esplendor de uma terra por onde nem mesmo a sombra da fraqueza repousa. Para aquele que não será hipnotizado pela caganifância da utilidade, aquele que demanda para o seu conforto a leveza, a beleza, a ascendência e o cultivo que fazem os esforços valerem a lágrima. Para o homem que sabe que o jogo, e não o trabalho, e o ócio, e não a pressa, são as grandes coisas da vida; e que o círculo de esforçar-se apenas para esforçar-se um pouco mais é uma ironia amarga que a alma civilizada aceita tão pouco quanto pode.
Beleza, suficiência, conforto e boas maneiras -- o que mais requer a civilização? Temos tudo isso no monarca divino que se reclina de maneira gloriosa e confortável em sua almofada sedosa defronte à lareira. Graça e júbilo para si próprio -- orgulho e harmonia e coordenação -- espírito, repouso e completude -- todas elas estão aqui, e necessitam apenas da desilusão para serem adoradas. Que alma seriamente civilizada serviria de outra forma que não como sacerdote de Bastet? O astro do gato, creio, está agora em seu ascendente, enquanto emergimos pouco a pouco dos sonhos éticos e de conformidade que enevoaram o século dezenove e elevaram o torpe cão ao topo do apreço sentimental. Se um renascimento do poder e da beleza haverá de restaurar nossa civilização ocidental, ou se as forças da desintegração já são poderosas demais para serem acorrentadas, ninguém pode dizer, mas no presente momento em que o cinismo desmascara o mundo entreo embusteiro século dezoito e o ominoso mistério das décadas vindouras temos ao menos o relance de um relâmpago da antiga perspectiva pagã e da sua antiga honestidade e clareza.
E o ídolo iluminado por este relâmpago, lobrigado justo e gracioso em seu trono encantado e adornado por seda e ouro sob uma cúpula criselefantina, é uma forma de graça perene nem sempre reconhecida entre os tateantes mortais -- o orgulhoso, o indomado, o misterioso, o luxuoso, o babilônico, o impessoal, o companheiro eterno da superioridade e da arte -- o tipo da beleza perfeita e o irmão da poesia -- o indolente, grave, conformado e patrício -- o gato.

NOTAS
(1) Edwin Henry Lanseer (1802 - 1873) era um pintor célebre por seus retratos de animais.
(2) O autor refere-se ao uso comum das palavras na língua inglesa. No caso do português o argumento de Lovecraft é parcialmente reforçado. Em particular, no português do Brasil, o termo "gato(a)" é usado popularmente em referência à beleza física de alguém. Os termos "cão" e "vira-lata", ainda no português do Brasil, são utilizados como opróbrio. Os dois possuem sentido muito similar ao descrito por Lovecraft. Assim, enquanto, na língua inglesa, para os termos "gato" e "cão" temos valorores, respectivamente, de opróbrio-opróbrio, no português os mesmos termos adquirem valores de encômio-opróbrio, tornando assim desnecessário o argumento atenuante do autor.
(3) No original, "mongrelism". No contexto refere-se ao fenômeno do cruzamento de raças diferentes do mesmo animal, os famosos vira-latas.
(4) Krazy Kat foi uma tira em quadrinhos publicada nos jornais norte-americanos entre 1913 e 1944 .
(5) Nomes comuns para gatos.
(6) Referência a Samuel Johnson (1709 - 1784) autor inglês que sofria de muitos problemas de saúde, dentre eles um caso sério de conjuntivite que quase chegou a cegá-lo.
(7) Versos do poema Christabel, de Samuel Taylor Coleridge
(8) Referência à expressão "he grins like a Cheshire cat" (ele sorri como um gato de Cheshire). Existem diversas lendas sobre sua origem; a mais conhecida parece ser a de que, no Condado de Cheshire, o queijo era moldado na forma do rosto de um gato sorridente. Uma outra versão sugere que os gatos de Cheshire viviam sorrindo devido à abundância de leite no condado, famoso pela produção de laticínios. A expressão se tornou bastante popular devido ao gato sorridente (chamado Cheshire Cat) do livro "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carrol.
(9) N.Y Tribune.
(10) O homem Arrow Collar ficou conhecido pela ilustração publicitária de J.C Leyendecker. O anúncio retratava um homem jovem, vestido para ocasião, com blusa social e colarinho. A imagem exibia o jovem americano do início do século XX como uma figura atlética, confiante e prática. O presidente Roosevelt referiu-se ao retrato como o tipo ideal do "homem comum".
(11) Literato best-seller norte-americano entre os anos 1902 - 1942 cujo nome caiu no esquecimento após a metade do século XX . Suas histórias têm fundo moral. Aos críticos dizia que sua tarefa não era a de realizar literatura, mas pregar ao homem comum.
(12) Margaret Higgins Sanger (1879 - 1966) foi uma ativista norte-americana. Advogava a causa do controle da natalidade e subscrevia um derivado da eugenia, chamado de eugenia negativa, cujo objetivo principal era a erradicação de doenças hereditárias e outras "desvantagens genéticas" através do controle racional da fertilidade.
(13) Isto é: os cavalos e as crianças.
(14) Cf. nota (1) acima.
(15) Jornais da época.
(16) Rudolph Valentino e Douglas Fairbanks eram famosos atores do cinema mudo à época. O primeiro morreu precocemente, causando histeria idólatra.
Eu sempre soube que Lovecraft adorava gatos, mas não tinha idéia do quanto...


Acho que dessa forma ele ficaria bastante feliz com a homenagem que fiz ao batizar o bichano aqui de casa com o nome dele. Esse é o Lovecraft.




 postado originalmente em: Mundo Tentacular