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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Que Sobrou da Religião



'Se há neste mundo um fato bem comprovado, é a percepção extra-sensorial durante o estado de morte clínica. Um corpo inerte, sem batimentos cardíacos ou qualquer atividade cerebral, desperta de repente e descreve, com riqueza de detalhes, o que se passava durante o seu transe, não só no quarto onde jazia, mas nos outros aposentos da casa ou do hospital, que de onde estava ele não poderia ver nem se estivesse acordado, bem de saúde e com os olhos abertos. Isso já se repetiu tantas vezes, e foi atestado por tantas autoridades científicas idôneas, que só um completo ignorante na matéria pode teimar em permanecer incrédulo. Mas mesmo alguns daqueles que reconhecem a impossibilidade de negar o fato relutam em tirar a conclusão que ele impõe necessariamente: os limites da consciência humana estendem-se para além do horizonte da atividade corporal, inclusive a do cérebro. A relutância em aceitar isso mostra que o “homem moderno” – o produto da cultura que herdamos do iluminismo – se identificou com o seu corpo ao ponto de sentir-se amedrontado e ofendido ante a mera sugestão de que sua pessoa é algo mais. É evidente que aí não se trata só de uma convicção, de uma idéia, mas de um transe auto-hipnótico incapacitante, de um bloqueio efetivo da percepção.

Esse estado é implantado nas almas pela tremenda pressão anônima da coletividade, que as mantém em estado de atrofia espiritual mediante a ameaça do escárnio e o temor – imaginário, mas nem por isso menos eficiente – da exclusão. Infinitamente multiplicado e potencializado pelo sistema educacional e pela a mídia , o que um dia foi mera idéia filosófica, ou pseudofilosófica, incorpora-se nas personalidades individuais como reflexo de autodefesa e, na mesma medida, restringe a autopercepção de cada qual ao mínimo necessário para o desempenho nas tarefas imediatas da vida socio-econômica. É tudo uma profecia auto-realizável: se a evidência avassaladora da percepção extracorporal é negada, não é só porque as pessoas não acreditam nela – é porque se tornaram realmente incapazes de vivenciá-la de maneira consciente. Vivem alienadas da sua experiência psíquica mais profunda e constante, encerradas num círculo de banalidades no qual o triunfalismo “cultural” e “científico” da mídia popular infunde uma ilusão de riqueza e variedade.

O “mundo real” no qual essas pessoas acreditam viver é o dualismo galilaico-cartesiano, já totalmente desmoralizado pela física de Einstein e Planck, mas que a mídia e o sistema escolar continuam impondo à alma das multidões como verdade definitiva: tudo o que existe nesse mundo são as “coisas físicas” e, em cima delas, o “pensamento humano”, as “criações culturais”. De um lado, a realidade dura da matéria regida por leis supostamente inflexíveis, nas quais se fundamenta a autoridade universal e inquestionável da “ciência”; de outro, a pasta mole e dúctil do “subjetivo”, do arbitrário, onde toda opinião vale o mesmo. Dessa esfera “subjetiva” faz parte a “religião”, que é o direito de crer no que bem se entenda, com a condição de não proclamá-lo jamais verdade objetiva ou valor universal.

Nessas condições, o próprio exercício da religião torna-se uma caricatura grotesca. Tanto quanto o ateu, o homem religioso de hoje em dia acredita piamente na existência de uma esfera material autônoma, regida por leis próprias que a ciência enuncia, só de vez em quando rompidas pela interferência do “milagre”, do “inexplicável”, do “divino”. Por mais que a filosofia esculhambe com o “Deus dos hiatos” (aquele que só age por entre as brechas do conhecimento científico), ele é o único que restou no altar das multidões de crentes. Oficializada pelo establishment governamental, universitário e midiático, a rígida separação kantiana de “conhecimento” e “fé” tornou-se verdade de evangelho para a maioria das almas religiosas, embora ela seja, em si, perfeitamente herética à luz da doutrina católica, interpondo um abismo infranqueável entre dimensões cuja interpenetração, ao contrário, é a própria essência da concepção cristã do cosmos. É novamente a profecia auto-realizável em ação: à percepção mutilada do eu individual corresponde uma religião mutilada, e vice-versa.

Quando digo percepção mutilada, estou afirmando, taxativamente, que a imagem do eu como algo que reside no corpo ou se identifica com ele é fantástica, ilusória, doente. Ela impõe à consciência limitações que não são de maneira alguma naturais, muito menos necessárias. Todas as tradições espirituais do mundo, todas as disciplinas sapienciais começam pela constatação óbvia de que o eu não é o corpo, não “está” no corpo mas de certo modo o abrange como o supra-espacial transcende e abrange o espacial (este é balizado por certas relações matemáticas que, em si, não estão em parte alguma do espaço). Mas uma coisa é compreender isso por pura lógica, outra bem melhor é poder constatá-lo no fato vivo da percepção extra-sensorial em casos de morte clínica. Bastaria, a rigor, um único episódio desse tipo para dar por terra com a balela de que o cérebro, isto é, o corpo, “cria” a cognição, o pensamento, a consciência. Mas os episódios são milhares, e o desinteresse dos crentes por esse tipo de fenômenos (mais estudados por ateus, adeptos da New Age e budistas do que por católicos, protestantes, ou mesmo judeus crentes) denota que a mente religiosa já se conformou com um estado de existência diminuída, em que a alma supracorporal, condição fundamental do acesso a Deus, só passará a existir no outro mundo, por alguma transmutação mágica da psique corporal, em vez de constituir já nesta vida a nossa realidade pessoal mais concreta, mais substantiva e mais verdadeira, presente e atuante nos nossos atos mais mínimos como nas nossas vivências mais elevadas e sublimes.

Durante milênios cada ser humano, ao pronunciar a palavra “eu”, referia-se de maneira imediata e automática à sua alma imortal, a única que podia orar e responder por seus próprios atos ante o altar da divindade. Dessa alma, a psique corporal era uma parte e função menor, voltada ao meio material e social tão-somente, alheia a todo senso do eterno e, a rigor, incapaz de pecado ou santidade, apenas de delitos e virtudes socialmente reconhecidos. A partir do momento em que a psique corporal foi assumida como realidade autônoma, cada indivíduo só se enxerga a si mesmo como membro de uma espécie animal e como “cidadão”, amputado daquela dimensão que fundamenta o senso último de responsabilidade e cultivando, em lugar dele, o mero instinto da adequação social, adornado ou não de “moral religiosa”. Imaginem a diferença que isso faz, por exemplo, na compreensão que você tem da Bíblia: se você não a lê com sua alma imortal, talvez fosse melhor não lê-la de maneira alguma, porque a lê com a carne e não com o espírito.'


Olavo de Carvalho

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Maiores, menores e a preguiça de pensar




'A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, não obstante, de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam porque é tão fácil que os outros se constituam seus tutores. É tão cômodos ser menor! Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que decide por mim a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo.

Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros hão de se encarregar em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade considera difícil e também perigosa a passagem à maioridade, pois aqueles tutores de bom grado se encarregaram de supervisioná-la. Depois de terem em primeiro lugar embrutecido o seu gado doméstico e cuidadosamente preservado essas tranquilas criaturas a fim de não ousarem dar nem um só passo fora do caminho em que as encerraram, e tal seria para aprender a andar, mostram-lhes depois o risco que as ameaça se tentarem andar sozinhas.

Ora, na verdade não é tão grande esse perigo, já que por fim aprenderiam muito bem a andar, depois de algumas quedas. Basta um exemplo desse tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo, de um modo geral, em suas tentativas futuras. É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da sua minoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor por ela, por ora sendo de fato incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque jamais o permitiriam tentar assim proceder.

Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem dele se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro, ainda que sobre o mais estreito fosso, pelo fato de não estar habituado a esse movimento livre. Por isso são bem poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender uma marcha segura.

Mas que um público de esclareça a si mesmo é perfeitamente possível; mais do que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois sempre se hão de encontrar alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, após terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão à sua volta o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por conta própria. Notável nesse caso é que o público, que anteriormente foi por eles conduzido a esse jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se rebelar por alguns de seus tutores, eles próprio incapazes de qualquer esclarecimento.

Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores ou os predecessores destes. Por isso, um público só muito morosamente pode chegar ao esclarecimento.

Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, mas jamais produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cinturões para conduzir a grande massa destituída de pensamento.' ¹


¹ - Resposta à pergunta: Que é "Esclarecimento"? ("Aukflarung")
(5 de dezembro de 1783, p. 516 - Berlinische Monatschrift)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Um Coração Forte


Todo conhecedor, estudioso, ou mesmo entusiasta das ciências humanas, e até mesmo das biológicas sabe, ainda que sem dar a isso muito destaque, que o ser humano funciona através da experimentação e adaptação. Entramos em contato com diversos tipos de informações, sentimentos e situações ao longo da vida, que moldam aos poucos nossa capacidade de lidar com cada um desses eventos. Somos seres adaptativos, que se moldam ao meio em que vivem e com o tempo se acostumam à mais íngreme diferença climática, cultural ou social.

É de interesse de todos viajar, conhecer novos países, culinárias, hábitos, línguas, pessoas, etc. Procuramos ler vários livros, revistas, ver todo tipo de filme pelo menos uma vez, experimentamos pratos diferentes, ainda que a contragosto; primando sempre por nos expandir. Sabemos que a quantidade e a diversidade de informação acrescentam valor ao que somos, nos tornando mais cultos, compreensivos, sábios e inteligentes... Sem dúvida a experiência é uma das formas mais eficientes (mas não mais fáceis) de adquirir conhecimento, e todos sabemos disso.

Eu me pergunto, no entando, por que somos incrivelmente reticentes a essa ideia quando a experiência, pode nos causar qualquer tipo de dor ou sofrimento.
Pessoas decidem sem pestanejar viajar pelo mundo, ou provar alimentos exóticos, conversar com desconhecidos, mas dão tudo o que tem para fugir de qualquer situação conflituosa, ou com potencial de trazer qualquer tipo de dificuldade ou esforço exacerbado.

Mas é inegável que quando passamos por isso, após breve reflexão, fica claro que aquele tipo de situação foi a que mais contribuiu pro nosso crescimento e fortalecimento, nos dando consequentemente, mais condição de criar um ambiente desejável ao nosso redor, ou de com maior destreza evitar uma possível recorrência desse male, seja num futuro próximo ou distante.

Assim como nossos músculos, nossos sentimentos só se fortalecem ao serem esticados e relaxados por diversas vezes. Não, não faço aqui uma apologia à dor, pelo contrário. Que ela seja exceção na nossa vida, mas que como a alegria, seja encarada como algo natural, que independente de desejada ou não, acontece, mas quando vai embora, pode deixar algo mais que uma passageira sensação de prazer ou satisfação.

A vida se torna imensuravelmente deplorável quando se resume à busca de sensações agradáveis e ao distanciamento de qualquer desafio, dificuldade ou sofrimento.
É pela repetição que uma situação primordialmente apocalíptica pode se tornar uma pequena pedra no sapato de um homem, que sequer se incomoda ao chutá-la para fora de seu caminho; conferindo-lhe o luxo de apenas passar adiante dos demais que se deitaram pela estrada, exauridos pelo menor espinho cravadona planta de seus pés.

Já que aprendemos a enfrentar a tudo e a todos como traço característico-social-contemporâneo, que tal aproveitar a viagem para fazer o mesmo com o indesejado e o infortúnio?
Um coração forte é aquele que foi desmantelado e reconstruído várias vezes, que escapa de cravos e lanças como um guerreiro experiente e corajoso.
E sem dúvida a vitória em uma batalha como essa trará mais honra, excelência e força para os que ousaram combatê-la.

Me orgulho das guerras que travei, não somente das que venci.
Pois para caminhar sobre a ponte do primeiro grande castelo conquistado, foi necessário levantar e caminhar sobre os escombros de vários próprios que foram destruídos.

Que venham outras grandes batalhas; guerreiro algum irá correr do local onde Deus um dia o consagrou.





'Não se aprende uma lição que não venha acompanhada da dor.
Já que não se pode construir nada sem um sacrifício.

Mas quando se aguenta essa dor e a supera,
as pessoas conseguem um coração forte que não perde para nada...



...sim, um coração como o aço.'