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domingo, 24 de abril de 2016

Humano, o Imortal


"Entendam bem, ser humano é conhecer.

Ser humano é compreender e o principal objeto desse estudo é o próprio ser humano. Claro, conhecer a física, a química, a matemática é muito bonito, maravilhoso. Mas tudo isso não serve para nada se o sujeito não compreender o ser humano. Existe uma obra notável sobre isso, a obra chamada A defesa de um matemático, de Thomas Hardy [G. H. Hardy]; foi um grande matemático do século XX. Nesse livro, ele vai escrever o seguinte:

‘Matemática é um algo maravilhoso, é genial, é incrível. Mas eu passei a minha vida toda só estudando matemática e a minha vida foi uma merda. Não valeu à pena, não entendi sobre mim mesmo. Tudo o que eu quis deu errado. Todas as pessoas de quem eu gostava se afastaram de mim. Não entendi nada, ninguém gosta de mim. A vida do matemático é uma droga. Porque essa foi a única coisa que eu quis compreender da realidade’ – ele mesmo fala – ‘eu posso até ter sido uma pessoa brilhante’ – porque foi de fato um matemático brilhante – ‘mas eu deveria ter usado essa inteligência para um objeto mais interessante, mais útil, que é o ser humano’.

A obra é interessantíssima, porque tem vários detalhes autobiográficos e várias coisas sobre matemática – por exemplo, nessa obra tem um capítulo, um ensaio sobre a apreciação estética das
fórmulas matemáticas. Provavelmente, a pessoa que tenha gostado um pouco de matemática – aquilo lá é um negócio brilhante, o sujeito era um gênio mesmo. Mas está lá um registro de que isso aqui não basta. Vocês podem se tornar um sujeito perfeito - um excelente profissional, um grande médico, um grande matemático, um grande político, um grande advogado, um grande ator; eu digo que isto não valerá nada. Quando chegar ao final, você irá dizer: ‘não valeu a pena’. Por quê? Porque o ser humano, enquanto ser humano, só serve para uma coisa: compreender. E ele não deve gastar essa vocação com ninharias. Essa é uma vocação tão sublime que está abaixo da dignidade dela ser desperdiçada exclusivamente com objetos pequenos e mesquinhos. Essa coisa, que é a inteligência humana, você a usa para entender do ser humano para cima; do ser humano para baixo, não vale. Para entender o ser humano ou coisas melhores. Menos do que isso, você está jogando fora o seu talento.





 Tomando um cafezinho, eu estava conversando com alguns dos alunos e levantou-se uma questão interessante que é o quanto a vida humana é curta para esse trabalho da inteligência; o quanto oitenta, noventa anos é pouco para isso. E aí se levantou uma questão: ‘mas se há uma vida depois da morte, você pode continuar’. Esta é uma questão interessante, porque se há uma vida depois da morte, ela é puramente espiritual. Então, se você levou uma vida como a do boi, só pensando em pagar as contas e resolver esses problemas, na hora em que esta vida te for tirada, vai ser muito pior para você se tiver outra vida depois dessa; se tiver uma vida puramente espiritual, na qual essa vida não existe mais. Tudo o que te definia como pessoa não existe mais, você perdeu. Então, havendo uma vida após a morte, ela só é de alguma maneira interessante para quem durante a sua vida nesse mundo se interessou de algum modo por uma atividade que fosse ela mesma também puramente espiritual. É justamente só para a pessoa que dedicou a vida dela – todo dia, uma ou duas horas por dia – para esse trabalho da inteligência, só para essa pessoa uma vida espiritual depois da morte tem algum interesse. Para as outras pessoas, essa vida seria um tormento, seria só um sofrimento.

O próprio Cristo falou que o seu coração está onde estão os seus tesouros. O que é um tesouro? É uma coisa que sua mente acalenta como valiosa; é uma coisa para a qual a atenção de sua mente se volta naturalmente. Se a sua mente está o tempo todo ocupada – ‘tenho que pagar a conta disso, tenho que fazer não-sei-o-quê, tenho que arrumar aquilo’ –, está só na vida biológica, quando você morrer ela vai continuar na vida biológica. Se ela continua funcionando depois da morte, ela vai continuar no mesmo processo, porque esse é o seu tesouro; só que esse tesouro estará longe de você. Isto é o inferno.

Existe um clássico sobre a meditação, uma grande obra sobre a meditação chamada Opúsculo sobre a arte de aprender e de meditar, de Hugo de São Vítor. Hugo de São Vítor foi um pensador que viveu no século XI, passagem do século X ao XI. Ele fala: ‘sim, uma das atividades mais importantes da vida humana é meditar. A vida humana é meditar’. Mas ele mesmo fala: ‘mas a meditação é impossível sem você recoletar certo material acerca do tema da meditação, porque toda meditação é acerca de algo. Onde você vai achar esses temas?’ Ele dizia: ‘só tem duas fontes de temas para a inteligência humana: a natureza e os livros. Não tem outras’. Claro, se você tiver a felicidade de morar no meio de um bosque maravilhoso, você pode tomar como base para a maior parte de suas meditações esse cenário idílico. Você sai da sua casa, senta do lado do riacho, fica ouvindo o barulhinho, vê as árvores, o ventinho passando e aí você vai usar isso como temas de meditação. Se você vive em um apartamento num paliteiro de prédios, eu sugiro que você compre alguns livros; é mais barato do que comprar o bosque.

Esse exercício diz que só isso é vida. O resto não é vida, o resto é um mecanismo cíclico que nunca avança. Nós pensamos assim: ‘se eu tiver mais dinheiro, o problema das contas vai sumir’. Mentira. Se eu tiver mais dinheiro, o problema das contas vai mudar de escala e vai continuar existindo do mesmo jeito; se eu tiver um bilhão de reais, o problema de contas será na escala de um bilhão de reais. Por quê? Porque isto é um mecanismo cíclico que não tem saída. É como a necessidade de alimento, a necessidade de sono ou a necessidade de sexo – tudo isso aí são mecanismos cíclicos. Vai dar uma volta no relógio e você vai precisar disso de novo. E depois vai acontecer de novo, de novo, de novo, de novo e assim vai ser sua vida toda. Isso não é vida, isso é um mecanismo. É somente na parte intelectual e espiritual que você possui uma vida, quer dizer, um processo de desenvolvimento que não se repete, mas que se abre para universos cada vez mais amplos. Somente aí existe um desenvolvimento real. Aliás, esse é um dos temas favoritos dos orientais em meditação: este mundo é Samsara; é uma série de ciclos que se repetem e que não se resolvem nunca. Essa é a figura que o oriental tem do mundo natural e essa figura é verdadeira, porque o mundo natural é assim mesmo, ele é uma indicação que não se resolve.

We move in circles
Balanced all the while
On a gleaming razor's edge.

É isso que põe o sujeito na dimensão realmente humana; é só isso que nos distingue dos animais. Não é o nosso jeito de pagar as contas com o real. Os animais pagam com o esforço físico; o boi tem que andar até a grama para pegar. E nós pagamos com um pedaço de papel, mas esse pedaço de papel significa esforço físico, é a mesma coisa. E pensem nisso: se existe uma vida após a morte, ela é um tormento para quem não viveu uma vida intelectual e espiritual antes da morte. Ela é só perder o que você tinha. Então, com este pensamento, eu vos deixo. Se existe uma vida após a morte, ela é um tormento para quem não tinha uma vida intelectual e espiritual antes da morte; ela é só perder tudo. 



Boa noite a todos."

Luiz Gonzaga de Carvalho Neto