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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Individual ou coletivo?


Essas são duas concepções que embasam as visões de mundo no aspecto político atual - ou você confere importância ao indivíduo para que a dignididade e a liberdade constituam a organização social coletiva; ou suprime essa noção e cria uma de coletividade alheia ao indivíduo; onde ele se torna apenas um instrumento da realização coletiva.

Não é difícil relacionar essas concepções das visões de direita e esquerda, de conservadores e liberais. Temos por princípio conservador a autonomia e a dignidade humana, direitos inalienáveis, bem como a propriedade privada e a livre iniciativa; pilares sem os quais (na visão conservadora) não se pode erigir uma sociedade organizada e justa. Já para os adeptos do coletivismo e do materialismo, o indivíduo deve ser suprimido até desaparecer, para que desse substrato emerja uma sociedade ideal, igualitária.

A noção da valorização do indivíduo tem sua raiz na grécia antiga mas é colocada sob os holofotes com o advento do cristianismo; que coloca a concepção humana como ato estritamente divino e merecedor de proteção e direitos desde a sua concepção. É através da valorização do indivíduo e seu religamento ao divino que os frutos e virtudes aparecerão e permitirão que a sociedade se estruture, através da família.

Por outro lado, a negação do "eu" (não confundir com negação do ego), tem raízes no pensamento comunista pensado por Marx. Para ele, os pensamentos, ações e até mesmo necessidades básicas humanas são fruto da guerra de classes, sendo definidas desde o nascimento pela sua condição social. E a única forma de transcender essa disparidade seria o fim das classes, através da vitória dos proletários, que se tornariam a classe dominante, acabando assim (acredite se quiser), com todo e qualquer conflito humano. É nesse aspecto que a noção de indivíduo deve ser negada em detrimento do coletivo. Não seríamos mais seres individualmente designados e formados, mas uma massa amorfa dentro de uma classe e de um sistema econômico.

Que valor teria então uma vida humana, diante de tamanha utopia revolucionária que seria desenhada nesse futuro (in)certo? Ou que seja; uma dezena, uma centena ou centenas de milhões de vidas? Se esse é o prelúdio para que a utopia da igualdade absoluta seja alcançada, nenhum preço seria alto demais, certo?

É com essa certeza religiosa de um paraíso futuro (e indeterminado) sobre a terra que se formaram os governos mais sanguinários que a história já testemunhou. E é a incitação do ódio, da revolta e do descontentamento, usados como combustível para acender a chama que culminaria na revolução. É a crença no poder criador do mal; no fato de que fomentar a maldade produzirá bondade e justiça.

Surge assim, a separação clara entre aqueles que buscam a manutenção de valores universais imutáveis e os que procuram subverter a ordem das coisas, crendo ter em sua mente a fórmula redentora para todo o mal que assola o mundo. Esse é o embrião do maior male que enfrentamos na atualidade: a mentalidade revolucionária. É a ilusão que o indivíduo incute na própria mente de que porta uma verdade superior que ao ser implantada livrará o mundo de seus males. Uma contradição absoluta entre o dogma cristão de que a salvação virá pelas mãos do Criador, para todos aqueles que O buscarem e seguirem; que o papel do homem é mudar a si mesmo e não ao mundo.

Esses são alguns dos pontos abordados num diálogo hipotético construído pelo Dr. Peter Kreeft em seu livro "Sócrates Encontra Marx"; desconstruindo uma série de contradições lógicas, distorções históricas, vícios de compreensão e outras mazelas que acometem a mente de todo aquele que tenta compreender o mundo à partir de si mesmo, dentro de suas limitações, não se abrindo para o transcendente e o metafísico.

E aqui está um dos meus trechos favoritos dessa obra:

SÓCRATES: Idolatras o "nós" e negas o "eu"; no entando o "nós", a sociedade, as massas - sim, mesmo o proletariado - acreditam no "eu" e não em tua filosofia que nega o "eu" em prol do "nós". Apenas alguns poucos indivíduos da elite, apenas os letrados, os alienados, os desarraigados acreditam em ti. As massas se compõem de camponeses supercticiosos, de tradicionalistas religiosos, de velhos e antiquados conservadores como eu. Eles temem a sua revolução.

MARX: É porque não sabem o que é melhor pra eles - e é por isso que precisam de meu livro e por isso que eu o escrevi.

SÓCRATES: Sabes o porquê de eles temerem a sua revolução?


MARX: É claro: porque são conservadores.

SÓCRATES: E sabes por que são conservadores?

MARX: Porque são estúpidos.

SÓCRATES: Não, porque são felizes.

MARX: Isso é uma baboseira completa.

SÓCRATES: Vejamos. Por que eles são chamados de "conservadores"?

MARX: Porque se opõem à mudança.

SÓCRATES: E por que eles se opõem à mudança?

MARX: Porque querem conservar a ordem antiga.

SÓCRATES: Certo. Agora, nós buscamos conservar as coisas que nos fazem felizes ou as coisas que nos fazem infelizes?

MARX: As que nos fazem felizes.

SÓCRATES: E nós buscamos mudar as coisas que nos fazem felizes ou as coisas que nos fazem infelizes?

MARX: As que nos fazem infelizes.

SÓCRATES: Portanto, os conservadores, por definição, são felizes; eles são conservadores porque são felizes. Já os radicais, por definição, são infelizes; eles são radicais porque são infelizes. Com efeito, alguns deles são tão apoquentados que tudo o que desejam é destruir tudo o que vêem e escrever palavras apocalípticas, como "tudo o que existe merece perecer".







segunda-feira, 20 de maio de 2013

O luxo ocidental aos olhos do mercador marroquino

"Hoje tive uma animada discussão com um comerciante de Fez (segunda maior cidade de Marrocos) para descobrir o que os mouros acham da civilização européia. Ele era um homem fino, com cerca de quarenta anos de idade e uma face séria e honesta. Fizera viagens de negócios às mais importantes cidades da Europa ocidental e vivera bastante tempo em Tânger, onde aprendeu o espanhol. Perguntei-lhe que tipo de impressão as grandes cidades européias lhe causaram.




Ele me olhou duro e respondeu friamente: 'Ruas amplas, lojas finas, lindos palácios, boas oficinas, tudo limpo.' Deu a impressão, com estas palavras, que mencionava tudo que era digno de louvor nos países europeus.
'O senhor não encontrou nada mais que seja belo e bom?', eu lhe perguntei. Fiz referência aos confortos da civilização européia...
'Isto é verdade', retrucou ele. 'Um pouco de sol? Uma viseira! Chuva? Uma sombrinha! Poeira? Um par de luvas! Uma caminhada? Uma bengala! Olhar em volta? Um par de óculos! Uma excurssão? Um carro! Para sentar? Uma cadeira! Comer? Garfos e facas! Um arranhão? Um médico. Morte? Uma estátua! Vocês são realmente homens? Por Dios, vocês são crianças!'

Ele chegou até a caçoar de nossa  arquitetura quando mencionei o conforto de nossas casas. 'O quê? Trezentos de vocês vivendo em um único prédio, um em cima do outro! Você tem de subir, subir, subir... Não há ar, nem luz, nem jardim!'

Então eu lhe disse que num domínio ele certamente reconheceria nossa superioridade, pois, em vez de ficarmos preguiçosamente sentados por horas com as pernas cruzadas, empregávamos nosso tempo em milhares de atividades úteis ou divertidas. A isto ele deu uma resposta mais sutil do que eu esperava: não lhe parecia um bom sinal, respondeu, que sentíssemos necessidade de fazer tantas coisas para passar o tempo. A própria vida deveria ser uma tortura para nós, se éramos totalmente incapazes de nos sentar quietos por uma única hora, sem ficarmos mortos de tédio tendo de buscar alívio em alguma distração ou conversa. Tínhamos medo de nós mesmos? O que era que nos atormentava?

Mas afinal, perguntei-lhe, o senhor não trocaria sua situação pela nossa? Ele pensou um pouco e respondeu: 'Não. Pois vocês não vivem mais do que nós, não são mais saudáveis do que nós, nem melhores, nem mais piedosos, nem mais felizes. Vocês deveriam nos deixar em paz. Não queiram que todos devam viver como vocês e ser felizes segundo seus padrões. Não é atoa que Deus colocou um mar entre o norte da África e a Europa.' "


Essa singular, surpreendente e elucidativa conversa - reproduzida em Fez, City of Islam, de Titus Burckhardt - aconteceu entre um comerciante muçulmano de Fez, Marrocos, e o embaixador italiano neste país. O colóquio entre o diplomata ocidental e o mercador magrebino aconteceu no final do século XIX. Nem por isso perdeu sua atualidade.

De fato, os encontros - seria mais correto falar em desencontros - entre a moderna civilização ocidental, dessacralizada, cientificista e tecnológica, e a civilização tradicional, no caso a islâmica, têm se repetido ao longo de todo o século XX. A conversa entre o embaixador do mundo moderno e o homem tradicional é relevante e atual porque toca em questões que muitos de nós já se puseram. Apesar do século que já se passou desde a conversa, os desafios colocados pelo mercado magrebino continuam de pé.

Nossas cidades são realmente muito grandes, aparentemente limpas, mas o homem de Fez intuiu a falta de algo, de alma e de verdade talvez, numa estrutura que parece mais voltada às máquinas ou às formigas do que a seres humanos concebidos em sua integralidade - feitos de corpo, alma e espírito.

Somos comparados a "crianças", viciados e obcecados que somos pelo conforto. O homem de Fez indica que, além de certos limites, o conforto acaba por embotar a vivacidade e o senso de proporções, para não dizer até a virilidade do homem moderno. Em sua maneira simples e direta de falar, aponta para o caráter muitas vezes desumano da arquitetura moderna, que nos priva entre outras coisas de um contato direto com a natureza e seus ritmos.

Finalmente, faz menção à nossa incessante agitação, na maior parte das vezes estéril. Por que, pergunta ele, sem obter resposta, nossa incapacidade para o silêncio e para o repouso? O que afinal nos preocupa? O que nos atormenta? Aonde queremos chegar? Não estaria também correto ao não nos considerar, de fato, nem melhores nem mais felizes do que eles, os homens tradicionais? Por que então, queremos impor nosso padrões? Será que é porque, como diz um antigo ditado: "a desgraça quer sempre companhia"?



domingo, 31 de março de 2013

Dar e receber, perdoar e vingar




"Ninguém pode receber mais do que dá, porque é o dar que cria a capacidade do receber. A receptividade é produzida e aumentada pela medida da vontade de dar. A medida dos dons que de Deus se recebe corresponde à medida da boa vontade com que se dá aos semelhantes o que se tem e o que se é.

No plano das coisas materiais, geralmente, quem dá esses dons perde-os e é empobrecido, e quem se apodera das coisas físicas enriquece. Mas no plano do espírito é exatamente o contrário: quem dá aos outros o que tem é enriquecido - e quem se recusa a dar, ou até tira dos outros, é empobrecido. Se dou aos outros o meu saber, possuo-o em maior abundância do que antes. Quanto mais amor dou a meus semelhantes, tanto mais abundante possuo a riqueza do meu amor.

O perfeito egoísta é um recebedor exclusivo - o perfeito altruísta é um doador universal. O egoísta é, por isso mesmo, a encarnação da indigência - como o altruísta é a personificação da abundância. Quem só pensa em receber é um escravo infeliz - quem de preferência pensa em dar é homem livre e feliz."*






Quando confrontadas a respeito dessa verdade, a maioria das pessoas a considera absurda. A lógica que rege o mundo é a da conquista, da acumulação, da competição, e não a da partilha e da colaboração. Ainda que no plano físico a matemática seja simples, não é o simples acúmulo (seja de bens, conhecimento ou sentimentos) que trará a prosperidade comum. E como somos seres sociais, totalmente dependentes de um ambiente propício e interação para vivermos com qualidade, quanto mais nossa mente for voltada para o acúmulo, maior tribulação nos acometerá no fim das contas.

Portanto, não só no plano espiritual, a partilha e a transmissão são práticas saudáveis e multiplicadoras em todos os sentidos. Essa realidade só é percebida para os que a praticam; ou seja, os que escolhem abrir mão da aparente lógica por trás dessas práticas. Uma pessoa nunca conseguirá entender através de explicações externas, a satisfação que é fazer de si mesmo, um agente transmissor e potencializador de virtudes.

A compreensão da ordem divina que rege o mundo vem como consequência da escolha racional de olhar menos para dentro de si e mais para as necessidades que nos cercam. Isso se dá por que o instinto protetivo e de auto-preservação já nos acompanha desde o nascimento. Não precisamos ser ensinados a cuidar de nossos próprios interesses, no entanto, um trabalho forte e constante é necessário para que consigamos encontrar verdadeiro regozijo na satisfação das necessidades do próximo.

Acontece que existem barreiras criadas por nosso ego (eu cósmico) que nos impedem de extender nossa consciência a esse ponto, nos prendendo somente na satisfação de necessidades próprias. Dessa forma, a não-identificação com o próprio ego é a única forma de conseguirmos desprendimento desse plano limitado de compreensão e ação. E para que isso aconteça, antes de tudo é necessário que aprendamos a perdoar, mas não somente isso:


"A verdadeira felicidade consiste na posse de tesouros imperecíveis, e estes valores eternos só podem vir da suprema Realidade, Deus. Mas esses tesouros só podem ser recebidos por quem é receptivo, e a creação dessa receptividade depende da minha interna atitude de generosidade e liberalidade, da facilidade com que partilho com meus semelhantes o que tenho e o que sou. Esse dar do próprio Eu, essa espontânea doação da própria pessoa em benefício dos outros é um doar completo, um perdoar¹.

O sentido profundo é este: o ofendido deve desligar-se do ofensor, ignorá-lo, não tomar nota; não deve sentir-se ofendido. Somente é ofendível o homem-ego, ao passo que o homem-Eu é inofendível. O ego ofendível é como água, que é alérgica às impurezas do ambiente e é por ele contaminada. O Eu, porém, é como luz ("vós sois a luz do mundo"), que é absolutamente incontaminável pelo ambiente; não existe luz impura; ela é pura no meio de ambientes impuros. A imunidade da luz é absoluta, ao passo que a imunidade da água é relativa.

Assim, o Eu, que é luz, é inofendível, ao passo que o ego, que ainda é como água, é ofendível. Muitas vezes o ego se sente ofendido; mesmo quando não há ofensor ele inventa pseudo-ofensas. Quem se sente ofendido confessa que se acha no mesmo plano do ofensor; quem não se sente ofendido está num plano acima do ofensor².
A lei de Moisés manda vingar a ofensa - "olho por olho, dente por dente". Certos teólogos mandam perdoar a ofensa. Mas, tanto o vingador quanto o perdoador provam que ainda estão no plano inferior da egoidade, uma vez que somente o ego é ofendível.³

Melhor do que vingar ou perdoar é desligar-se, ultrapassar o horizontal do ego ofendível e subir para a vertical do Eu inofendível."*

É assim que funciona uma consciência elevada, verdadeiramente evoluída no sentido de compreender que não pertence a este mundo, mas está aqui apenas de passagem, para cumprir certos desígnios.

Dar demasia importância às coisas terrenas a ponto de deixar que a vida se torne uma constante busca por realizações terrenas é uma ofensa direta a Deus, que nos criou com consciência, inteligência, capacidade crítica e investigativa; todas as ferramentas possíveis para que investiguemos assuntos e questões da ordem metafísica e espiritual. É nesse ponto que a esmagadora maioria da humanidade sempre se perdeu.

"A evolução humana consiste essencialmente na expansão progressiva da sua consciência, no desdobramento ou alargamento do seu Eu individual rumo à consiência universal; ou seja, na transição da consciência unilateral, egocêntrica, para a consciência onilateral, cosmocêntrica."*


 A não-identificação é a chave para o verdadeiro perdão. E o perdão é o que nos abre as portas para compreender essa verdade essencial sobre dar e receber. Sem estas bases bem estabelecidas é impensável que consigamos entender sequer os fundamentos do amor de Cristo por nós, e consequentemente do nosso diante dos outros. Ninguém pode dar o que nunca recebeu, mas o fato é que já recebemos mais amor do que podemos compreender.





* Trechos do livro A Metafísica do Cristianismo, de Humberto Rohden

¹ Em todas as línguas a palavra "perdoar" é um composto de "dar" ou "doar". Perdonare (de donare, doar), vergeben (de geben, dar), forgive (de give, dar). Os prefixos "per", "ver", e "for" denotam totalidade, plenitude, inteireza.

² Como ilustrado pelo texto: "Os níveis do Ser Humano"

³ Existem práticas na doutrina gnóstica sobre como silenciar o ego, ou mesmo "matá-lo"; embora eu não recomende esse tipo de leitura para pessoas que não possuem uma forte base espiritual prévia.

terça-feira, 26 de março de 2013

O Sobrenatural Natural



Vou basear a reflexão de hoje em trechos tirados do livro "A Metafísica do Cristianismo", do filósofo brasileiro Humberto Rohden, que explica com simplicidade e objetividade como deveria se dar a ascensão espiritual de forma mais natural possível:









"O século XIX foi o século do materialismo clássico; hoje, cientificamente falando, o materialismo morreu... por falta de matéria, pois a ciência provou que a matéria não existe, é uma simples forma ou um estado de ser da energia. A mesma energia pode aparecer visível e invisível. A mesma matéria pode ser objeto dos nossos sentidos e pode, também, ser de todo imperceptível.

Coisa análoga dá-se todos os dias na natureza; as plantas extraem da terra elementos inorgânicos, chamados "não vivos", e, sob o impacto da vida, ou do princípio vital, transmudam essas substâncias "mortas" em substâncias "vivas" - verdadeira ressureição.
Os animais, por seu turno, assimilando as plantas, conferem sensibilidade a seres insensíveis.

Para realizar essas ressurreições, basta que a planta ou o animal consigam permear completamente do seu princípio vital ou sensitivo as substância não vivas ou não sensitivas, e assim as vitalizam ou sentivizam.

Nada disso é milagre ou exceção das leis da natureza, mas uma constante afirmação e confirmação dessas mesmas leis. Da mesma forma, não é milagre que o nosso corpo material, sob o poderoso impacto do espírito, a mais alta energia do universo, seja transformado em corpo espiritual, isento das leis da gravidade e dimensão que regem a matéria no plano inferior da existência.

Um dos maiores obstáculos à compreensão desse processo é o costume tradicional e errôneo de dividirmos a realidade em zona natural e sobrenatural. De fato, o sobrenatural é um simples refúgio da nossa ignorância. Para Deus não há sobrenatural, e quanto mais o homem se diviniza pela expansão da sua consciência, tanto mais perde a noção do sobrenatural e tanto mais natural considera tudo o que acontece. Deus é infinitamente natural, e é esta a razão por que nós, sendo apenas finitamente naturais, o consideramos sobrenatural.

Para o mineral, a vida da planta é sobrenatural. Para a planta, a sensitividade do animal é sobrenatural. Para o animal, a atividade intelectual do homem é sobrenatural. Para o homem simplesmente intelectual, o mundo espiritual é sobrenatural. Mas todas essas "sobrenaturalidades" são apenas relativas, tomando da perspectiva do observador que se acha em plano inferior; visto do plano superior, o sobrenatural é natural. Do plano supremo ou divino, nada é sobrenatural, tudo é absolutamente natural."


Esse trecho nos apresenta uma outra perspectiva para a compreensão do sobrenatural. Tudo aquilo que nos parece misterioso, inatingível ou mesmo inexplicável, não é nada além de uma realidade natural, mas que é indecifrável/imperceptível diante das limitações dos nossos sentidos e capacidades normais.

A grande diferença entre os seres humanos e as formas inferiores de existência nesse plano, é que temos uma consciência capaz de se expandir e adquirir compreensão dos planos de existência superiores (plano espiritual). Dessa forma, o que nos parece sobrenatural nos é revelado como um outro plano natural, o metafísico.

Ocorre que essa ascensão da compreensão humana, que seria o degrau mais elevado em nossa jornada interior, requer que estejamos perfeitamente alinhados com as leis divinas que foram feitas para a organização total do universo. Podemos dizer com segurança que estamos num plano regido por leis cósmicas (cosmo, do grego antigo κόσμος, transl. kósmos, "ordem") e não um universo de caos (desordem e confusão). 

E é por vivermos num universo de ordem, que estamos, de plano, impedidos de viver de maneira completamente alheia a sua organização e sua lógica. Sendo assim, temos apenas duas decisões possíveis para tomar ao escolher como pautaremos nossa existência. Podemos escolher cumprir com gozo ou com sofrimento, a vontade creadora¹ do Universo, estabelecida por Deus. A escolha da forma com que cumpriremos tais desígnios é tudo.

Acontece que os seres humanos costumam cumprir a vontade de Deus de maneira dolorosa, com muitos sofrimentos e sacrifícios. Mas isso é tudo o que o livre-arbítrio lhes faculta fazer. Eles o fazem assim porque julgam poder encontrar felicidade no cumprimento da sua vontade humana contra a vontade divina. É desnecessário dizer que para que a vontade creadora¹ se manifeste e seja cumprida com alegria, a criatura se disponha a submeter seus ímpetos e vontades à vontade divina.

E é esse o fardo e o dilema que marca a vida de quase que a totalidade de quem busca esse caminho mais elevado. Mas as coisas não deveriam ser assim. Elas não precisam ser assim. Entendamos:

"Existe uma literatura devocional que pretende fazer crer que a vida de Jesus Cristo foi uma vida triste, dolorosa, e que todo cristão genuíno deva levar a vida de tristezas e dores. A verdade, porém, é que nunca foi vivida sobre a face da terra uma vida mais bela e jubilosa que a do Nazareno, uma vez que para ele a espiritualidade não era sacrificial e cruciante, como é geralmente para seus discípulos, mas divinamente deleitosa, tanto assim que ele compara o cumprimento da vontade do Pai celeste a um banquete ou manjar apetitoso: "O meu manjar é cumprir a vontade daquele que me enviou" (Jo 4:34). O místico, o homem plenamente cristificado, é o único homem que pode realmente gozar as coisas belas do mundo de Deus, porque está em perfeita harmonia com o Deus do mundo, e o seu gozo não contém o menor ressaibo de amargura, como necessariamente acontece com o gozador profano, o homem que quer gozar o mundo de Deus sem estar em paz com o Deus do mundo. O homem espiritual não só conhece as alegrias puras do espírito, mas é também o único homem que pode gozar em cheio das belezas do mundo material, porque goza-as com liberdade interior - goza-as sem temor nem remorso, descobre-lhes a suavidade interna, que para o gozador materialista é desconhecida. A verdadeira mística é poesia e delícia, porque é retidão e racionalidade.

Pensam os inexperientes que a mística e a racionalidade sejam duas coisas incompatíveis e mutuamente exclusivas, quando na verdade o único racionalista genuíno é o místico; é o realista por excelência, como o Cristo, que, sendo o rei da mística, era também o rei da racionalidade. Com efeito, tanto mais realista e racional é o homem quanto mais espiritual e místico. Deus, o Espírito infinito, é também a Razão sem limites e a Realidade absoluta.

O que não é feito com facilidade e espontânea alegria não tem garantia de perpetuidade, como vemos em todos os reinos da natureza. Se tivéssemos de comer e beber e dormir e procriar filhos unicamente pelo estrito senso do dever, já não existiria ser vivo sobre a terra, e a humanidade estaria extinta há muito tempo. A natureza sabe porque associou o deleite a todas as coisas necessárias. O mesmo acontece nas regiões superiores da vida. Enquanto a vida espiritual for para mim um sacrifício diário e uma tortura perene, não tenho garantia de perseverança no terreno da espiritualidade; cedo ou tarde, em lances críticos, a minha "virtude" falhará, como acabarão por falhas todas as atitudes difíceis e penosas.

Só no dia em que os cruciantes imperativos da ética se transformarem em exultantes optativos da mística; quando a amargura do dever se converter na suavidade do querer; quando eu puder em verdade dizer com o salmista: "Eu amo a Tua lei, Senhor, e os Teus preceitos são a minha delícia" - só então terei sólida garantia para a perpetuidade da minha vida espiritual. Enquanto o amor para com meus inimigos me parecer absurdo ou heroico; enquanto o receber me der maior felicidade que o dar; enquanto o espírito do Sermão da Montanha me parecer apenas um longínquo idealismo teórico, e não um propínquo realismo prático - não terei uma espiritualidade feliz; não terei feito a vontade de Deus aqui na terra assim como ela é feita nos céus. "Deus ama um doador alegre" - e não um servidor tristonho e gemebundo."

Esse é o caminho das pedras. Essa é a verdadeira transformação da mente que irá experimentar a perfeita vontade de Deus. É a diferença dos que se convertem e dos que apenas se convencem.

É através desse processo natural que encontraremos dentro e diante de nós, o verdadeiro sobrenatural. O sobrenatural natural!


¹: Até bem pouco tempo, existiam os verbos CREAR e CRIAR, os quais não eram sinônimos. Crear significava "tirar do nada", e era verbo irregular; o segundo vocábulo, criar, significava "dar de comer", "nutrir". Essa é a razão pela qual, os dois conceitos se tornam filosoficamente incompatíveis; sendo portanto, de extrema importância que a distinção permanceça acontecendo, para que não haja confusão entre os dois conceitos.

 







O homem perfeito não será, pois, um homem sem corpo - que não seria homem na verdade -, mas um homem cujo princípio superior (alma) penetrou plenamente no princípio inferior (corpo).
'E haverá um novo céu e uma terra nova... Deus habitará no meio dos homens... E o reino dos céus será proclamado sore a face da terra..."










segunda-feira, 4 de março de 2013

A compulsão patológica pela auto-projeção



Aqui vai uma breve reflexão que me ocorreu enquanto eu lia o trecho de um livro que faz um apanhado histórico de alguns pontos sobre o comportamento e a evolução social da humanidade.

Nesse capítulo específico, é narrado como se manifestavam alguns comportamentos que hoje são reconhecidamente patológicos, numa época em que suas causas ainda eram desconhecidas.

"A anorexia, que implicava em recusar alimento e que normalmente se manifestava diante da família inteira, na hora das refeições era ainda mais útil. De acordo com a mesma historiadora (Elaine Showalter), dava às moças que sofriam dela "o meio perfeito" de controlar suas famílias; fazendo "os pais ficarem possessos, as mães, chorarem" e tornava-as "o único objeto de preocupação e das conversas". Não foi à toa que a chamaram de "a clássica doença da moda na belle époque".

As pacientes com suficiente discernimento, tais como Florence Nightingale, às vezes acabavam admitindo que queriam atenção e encontravam meios melhores de consegui-la. Algumas acusavam os médicos que tinham feito de tudo para obter uma cura; ainda faziam de seus sintomas o centro de sua vida.


(...)


Algumas mulheres fingiam sintomas, ou seja, punham fezes na boca e vomitavam para simular problemas do sistema digestivo. Outras falavam sem parar. Dessas, a que ficou mais conhecida foi a "Dora" de Freud. Dora, cujo nome real era Ida Bauer, era a filha de uma família de classe média alta. Tinha sido encaminhada por uma variedade de sintomas, incluindo a inabilidade de falar sua língua natal (mas não as outras com as quais tinha familiaridade). Ela gostou tanto de ser um famoso estudo de caso que isso se tornou o centro de sua existência. Desde então, tentou repetir seu triunfo: exibindo novos sintomas e indo de médico em médico numa interminável busca por atenção."
  ¹


                           


Ao ler essa tendência fica impossível não traçar um paralelo com um comportamento amplamente disseminado nos dias de hoje: o sonho de alcançar a fama, o destaque social e o reconhecimento das pessoas.

Lembrando que essa síndrome vai muito além daqueles que sonham em ser atletas famosos, estrelas da música, ou artistas da televisão ou cinema - não que haja nada de errado em ser essas coisas, desde que você tenha uma aptidão e gosto natural para tanto, e não busque tais carreiras por causa da consequência que elas trazem, mas pelo exercício do ofício em si - falo de todos que possuem como estilo de vida, a construção e a exposição da própria figura, ainda que em menores redutos. Estão aí os exemplos dos que buscam fama ao se apresentarem em palcos ou quadras aplaudidos por dezenas de milhares de pessoas, e outros que simulam doenças psíquicas apenas para obter atenção dos pais. Mas será essa busca por reconhecimento e atenção natural do ser humano, ou apenas mais um sintoma de uma doença da alma?

Vivemos a era do rápido - quase instantâneo - tráfego de informações, excesso de meios de comunicação e interação, fazendo com que muitas vezes nos tornemos dependentes dessa dinamica. Não é raro encontrar pessoas que entram em pânico ao ficar sem celular, ou conexão de internet por algumas horas. O desespero de perder contato com os outros só pode ser tão angustiante para aqueles que tem medo de ter contato consigo mesmos. É como diz Arthur Schopenhauer:

"O homem só pode ser si mesmo por completo enquanto estiver sozinho; por conseguinte, quem não ama a solidão, não ama a liberdade; pois o homem só é livre quando está sozinho. Cada qual evitará, suportará ou amará a solidão na proporção exata do valor de seu próprio ser.
Porque na solidão o mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o espírito elevado toda a magnitude de sua grandeza; em suma, cada qual sente aquilo que é. Ademais, quanto mais elevada for a posição que um homem ocupa na hierarquia da natureza, mais solitário será; isso é essencial e inevitável." 


Ainda na temática das interações virtuais, observem que as redes sociais que mais fazem sucesso nos últimos anos são aquelas onde é possível um maior grau de exposição do sujeito, através de fotos, vídeos, opiniões, textos, localidades onde se visita e todo tipo de informação. Acontece que agora podemos não apenas comentar livremente sobre cada aspecto da vida alheia, como também emitir um juízo de valor sobre eles. No Facebook, por exemplo, a possibilidade de hipocrisia e afago do ego alheio é absoluta. Pode-se "curtir" algo, mas não "descurtir", ou protestar, sem se expor através de um comentário direto; coisa que a maioria evita, afinal não pega bem passar por contestador, estraga-prazeres, ou revoltado. Afinal é um pecado mortal criticar a opinião, a imagem e ferir o ego alheio.

E de toda essa facilitação técnica somada à nossa cultura relativista, politicamente correta e flagrantemente hipócrita, surge a prática de "se vender".
É uma espécie de comportamento quase patológico, onde pessoas comuns parecem se comportar como celebridades, dando notícia de tudo o que fazem, comem, gostam, acham, enxergam, vão e pensam. E claro, tudo passa pelo filtro da moda, do luxo e do glamour antes de ser compartilhado. Ainda estou pagando pra ver quem poste foto do misto quente feito na chapa da padaria ou faça check-in no dogão do Seu Zé de Freitas.A pessoa tem que saber "se vender", mostrar a que veio, fazer um bom marketing pessoal - como no brilhante artigo do Luiz Felipe Pondé - afinal nem todos tem obrigação de saber quem você é de verdade. 

A minha pergunta é: e quem disse que todo mundo deve necessariamente te conhecer e saber quem/como você é? E mais: quem disse que a maioria delas se importa com isso?

Bom, talvez a maioria até se importe; mas o que vejo é que não são todas as pessoas que "se vendem", que são muito procuradas e "consumidas" virtualmente. O que vejo é que uma minoria realmente recebem a tão preciosa atenção que procuram ao se expor nas redes sociais. E são justamente aquelas pessoas que já atingiram o que a maioria busca com essa prática: destaque social, uma quantidade maior ou menor de status, fama, grana, e por aí vai. Não é necessário discorrer sobre a miséria moral e espiritual que paira sobre as almas que buscam somente essas coisas, ou mesmo as consideram expoentes de sucesso, desenvolvimento e grandeza de um ser humano.


Essa mentalidade acaba gerando uma distorção enorme, onde as pessoas começam a desvalorizar a mansidão, a humildade, a discrição e começam de uma forma ou de outra a apreciar a arrogância, a prepotência, geralmente tentando camuflar essas baixezas sob pretextos equinos como: "ah, ele é ignorante mas tem um bom coração", "ele é arrogante mas é sincero, fala o que pensa", "ele é grosseiro, prepotente mas tem personalidade, né?".

Assim fica fácil concluir que essa cultura da auto-exposição, seja em maior ou menor grau, denota um profundo nível de vazio interior, de carência por qualquer motivo, de baixo nível intelectual, sabedoria (não confundir com conhecimento técnico ou mesmo sucesso em determinada profissão; uma coisa não tem nada a ver com a outra) e afins.
Em suma, é a celebração da futilidade, da aparência e de desejos igualmente baixos e fúteis, sobre a realidade, a essência, a verdade. Prefere-se omitir uma opinião, censurar uma ideia própria, abandonar uma causa do que correr o risco de ser mal visto ou mal falado pelos outros. Esse é o tipo de covardia moral mais grave, pois coloca-se a própria imagem e a busca pela adulação, acima da própria verdade de si - assunto de extrema seriedade sobre o qual discorri na postagem passada. Assim a corrosão do caráter e a confusão absoluta passa a ser questão de tempo. Até que chega-se ao ponto em que é mais importante saber escolher uma roupa camuflada, o filtro certo e o ângulo apropriado na foto do que efetivamente suar para manter a silhueta nos conformes;  melhor aparentar estar sempre saudável, bem-humorado, feliz e realizado do que efetivamente batalhar para viver isso; mais vale tirar foto de cada segundo em que o sol recua rumo ao horizonte do que contemplar lentamente a beleza do astro-rei desaparecendo ao longe no oceano.

Benvindos à época onde a ciência cria medicações na velocidade da luz mas as doenças psíquicas e espirituais pululam a vários gigabytes por segundo.






                          


¹: Trecho extraído da obra "O Sexo Privilegiado", do historiador Martin Van Creveld - pg.402-403
²: Ouçam/leiam: Dea Pecuniae