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sexta-feira, 27 de junho de 2014

A Crise do Mundo Moderno

É sempre bom um pouco de perspectiva para entendermos, ainda que superficialmente as condições sob as quais vivemos. Quanto mais se olha para trás e para cima, melhor será a percepção dos parâmetros pelos quais pautamos desde nosso valores mais profundos, até nossas mais frívolas opiniões. É nesse sentido que a filosofia perene nos coloca diante de um holofote, para que assim percebamos em quão grandes trevas andamos às apalpadelas, ainda que acreditando testemunhar a época de maior clarividência e no ápice da sabedoria e conhecimento.

- A Crise do Mundo Moderno


A palavra "filosofia", em si mesma pode seguramente ser tomada em um sentido muito legítimo, que sem dúvida foi o seu primitivo sentido, sobretudo, se for verdade, como pretendem, que foi Pitágoras quem a empregou antes de qualquer outra pessoa: etimologicamente ela não significa senão "amor à sabedoria"; designa portanto, em primeiro lugar, uma prévia disposição requerida para ascender à sabedoria, mas também pode designar, por uma extensão muito natural, a procura que, provindo desta mesma disposição, deve conduzir ao conhecimento. Não é pois senão um estágio preliminar o preparatório de um encaminhamento que conduz à sabedoria, mas que nem por isso deixa de estar abaixo dela. O descaminho que se produziu posteriormente consistiu em tomar este grau transitório pelo próprio fim, tem pretender substituir pela sabedoria a "filosofia", o que implica na falta de lembrança ou o desconhecimento da verdadeira natureza da primeira. E foi assim que nasceu o que poderemos chamar a filosofia "profana", isto é, uma pretensa sabedoria puramente humana e por conseguinte de ordem simplesmente racional, tomando o lugar da verdadeira sabedoria tradicional, supra-racional e "não humana". 


É este o resultado em que culminaria o movimento começado pelos gregos, em que já se afirmavam as tendências que seriam em nossos dias levadas às conseqüências mais extremas. A excessiva importância que deram ao pensamento racional, acentuou-se ainda mais, chegando ao "racionalismo", atitude especialmente moderna que consiste, não mais em só e simplesmente ignorar mas em negar expressamente tudo quanto seja de ordem supra-racional.

Já foram também várias vezes assinalados certos traços comuns entre a decadência antiga e a época atual; e sem querer levar muito avante o paralelismo, devemos, efetivamente, reconhecer nele várias semelhanças notáveis. A filosofia puramente "profana" tinha ganho terreno; o aparecimento do cepticismo de um lado, o sucesso do "moralismo" estóico e epicurista do outro, mostram bastante até que ponto a intelectualidade desceu. Ao mesmo tempo as antigas doutrinas sagradas, que quase mais ninguém compreendia, tinham degenerado, devido a esta incompreensão, ao "paganismo", no verdadeiro sentido do termo, isto é, não passavam de "superstições", coisas que, tendo perdido sua profunda significação, sobrevivem a si mesmas por manifestações unicamente exteriores.



O acelerado declínio de uma civilização pode ser exposto pela 
degeneração de seu  senso estético, aversão à justiça, e à moral. 
As noções de arte ilustram bem esse aspecto.


A verdadeira Idade Média, para nós, estende-se desde o reinado de Carlos Magno até os princípios do século XIV. Com esta última data começa uma mova decadência, que através de etapas diversas, se foi acentuando até nossos dias. E o verdadeiro ponto de partida da crise moderna é o começo da desagregação da "cristandade", com a qual se identificava essencialmente a civilização medieval no Ocidente. Ao mesmo tempo, o fim do regime feudal, assaz intimamente ligado e solidário com esta mesma "cristandade", é a origem da constituição das "nacionalidades". Portanto, é preciso considerar o começo dos tempos modernos dois séculos mais cedo do que se leva em conta habitualmente.

Quanto às ciências tradicionais da idade média, depois de terem apresentado ainda algumas manifestações finais, inerentes a esta época, desapareceram tão radicalmente como as das civilizações mais remotas que foram outrora aniquiladas por algum cataclismo; desta vez, porém, nada haveria para substitui-las. Daí por diante nada mais houve além da filosofia e da ciência "profanas", isto é, a negação da verdadeira intelectualidade, a limitação do conhecimento à ordem mais inferior, o estudo empírico e analítico dos fatos que não estão mais ligados a qualquer princípio, a dispersão numa multidão indefinida de detalhes insignificantes, o acúmulo de hipóteses sem fundamentos, que se destróem incessantemente umas às outras, e vistas fragmentárias que a nada podem conduzir, salvo a essas aplicações práticas que constituem a única superioridade efetiva da civilização moderna; superioridade aliás pouco invejável, e que desenvolvendo-se até abafar qualquer outra preocupação deu à esta civilização o caráter puramente material que a tornou uma verdadeira monstruosidade.

Há uma palavra que ocupou um lugar de honra na Renascença, e que resumia antecipadamente todo o programa da civilização moderna: o "humanismo". Tratava-se, com efeito, de reduzir tudo a proporções puramente humanas; prescindir de qualquer princípio de ordem superior, e poder-se-ia dizer simbolicamente desviar-se do céu sob o pretexto de conquistar a terra.

O "humanismo" já era uma primeira forma daquilo em que se transformaria o "laicismo" contemporâneo; e querendo reduzir tudo à medida do homem, tomado como fim, a si próprio, acabou êle por descer de etapa  em etapa ao seu mais baixo nível, e para só quase procurar a satisfação das necessidades inerentes ao lado material de sua natureza, pretensão afinal de contas bastante ilusória, pois que esta suscita sempre mais necessidades artificiais dia que as poderia satisfazer.

Irá o mundo moderno até o fim deste fatal declive, ou então, como aconteceu na decadência do mundo greco-latino, uma nova correção se produzirá, e ainda desta vez antes que tenha atingido o fundo do abismo para onde está sendo arrastado? Mas parece provável que uma parada a meio caminho não seja mais possível. Segundo todas as indicações fornecidas pelas doutrinas tradicionais, nós já entramos decididamente na fase final da Kali Yuga, no período mais sombrio desta "idade sombria", e deste estado de dissolução não é mais possível sair senão por um cataclismo, pois neste caso não bastará
uma simples retificação — será necessário uma renovação total. A desordem e a confusão imperam em todos os campos, foram levadas a um ponto que ultrapassa muito e muito tudo quanto se havia visto precedententente, e partindo do Ocidente, ameaçam agora invadir o mundo inteiro.




Efetivamente é mesmo isso o que nós podemos constatar na civilização moderna, que não vive por assim dizer, senão daquilo que as civilizações anteriores desdenharam. Para o evidenciar, basta ver de que modo os representantes das civilizações que se puderam ainda manter, até agora no mundo oriental, apreciam as ciências ociden tais e suas aplicações industriais. Entretanto estes conhecimentos inferiores, tão vazios aos olhos de quem possui um conhecimento de outra ordem, deviam ser "realizados", e para isso seria preciso que se encontrassem numa fase em que a verdadeira intelectualidade tivesse desaparecido.

É esse o caso de tôdas as civilizações a que podemos chamar normais, ou ainda tradicionais; não há entre elas nenhuma oposição essencial, e as divergências, quando existam são apenas exteriores e superficiais; uma civilização que não reconheça princípio algum superior, que só seja na realidade fundada sobre uma negação de princípios, é ipso-facto desprovida de todo o meio de entendimento com as outras, pois este entendimento para ser verdadeiramente profundo e eficaz, só pode estabelecer-se pelo alto, quer dizer, precisamente pelo que falta a esta civilização anormal e que perdeu sua rota. No presente estado do mundo, temos por conseguinte, de um lado todas as civilizações que permaneceram fiéis ao espírito tradicional, que são as  civilizações orientais, e de outro lado uma civilização propriamente antitradicional que é a civilização ocidental moderna.

Excertos do primeiro capítulo da obra homônima de René Guénon.