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domingo, 31 de março de 2013

Dar e receber, perdoar e vingar




"Ninguém pode receber mais do que dá, porque é o dar que cria a capacidade do receber. A receptividade é produzida e aumentada pela medida da vontade de dar. A medida dos dons que de Deus se recebe corresponde à medida da boa vontade com que se dá aos semelhantes o que se tem e o que se é.

No plano das coisas materiais, geralmente, quem dá esses dons perde-os e é empobrecido, e quem se apodera das coisas físicas enriquece. Mas no plano do espírito é exatamente o contrário: quem dá aos outros o que tem é enriquecido - e quem se recusa a dar, ou até tira dos outros, é empobrecido. Se dou aos outros o meu saber, possuo-o em maior abundância do que antes. Quanto mais amor dou a meus semelhantes, tanto mais abundante possuo a riqueza do meu amor.

O perfeito egoísta é um recebedor exclusivo - o perfeito altruísta é um doador universal. O egoísta é, por isso mesmo, a encarnação da indigência - como o altruísta é a personificação da abundância. Quem só pensa em receber é um escravo infeliz - quem de preferência pensa em dar é homem livre e feliz."*






Quando confrontadas a respeito dessa verdade, a maioria das pessoas a considera absurda. A lógica que rege o mundo é a da conquista, da acumulação, da competição, e não a da partilha e da colaboração. Ainda que no plano físico a matemática seja simples, não é o simples acúmulo (seja de bens, conhecimento ou sentimentos) que trará a prosperidade comum. E como somos seres sociais, totalmente dependentes de um ambiente propício e interação para vivermos com qualidade, quanto mais nossa mente for voltada para o acúmulo, maior tribulação nos acometerá no fim das contas.

Portanto, não só no plano espiritual, a partilha e a transmissão são práticas saudáveis e multiplicadoras em todos os sentidos. Essa realidade só é percebida para os que a praticam; ou seja, os que escolhem abrir mão da aparente lógica por trás dessas práticas. Uma pessoa nunca conseguirá entender através de explicações externas, a satisfação que é fazer de si mesmo, um agente transmissor e potencializador de virtudes.

A compreensão da ordem divina que rege o mundo vem como consequência da escolha racional de olhar menos para dentro de si e mais para as necessidades que nos cercam. Isso se dá por que o instinto protetivo e de auto-preservação já nos acompanha desde o nascimento. Não precisamos ser ensinados a cuidar de nossos próprios interesses, no entanto, um trabalho forte e constante é necessário para que consigamos encontrar verdadeiro regozijo na satisfação das necessidades do próximo.

Acontece que existem barreiras criadas por nosso ego (eu cósmico) que nos impedem de extender nossa consciência a esse ponto, nos prendendo somente na satisfação de necessidades próprias. Dessa forma, a não-identificação com o próprio ego é a única forma de conseguirmos desprendimento desse plano limitado de compreensão e ação. E para que isso aconteça, antes de tudo é necessário que aprendamos a perdoar, mas não somente isso:


"A verdadeira felicidade consiste na posse de tesouros imperecíveis, e estes valores eternos só podem vir da suprema Realidade, Deus. Mas esses tesouros só podem ser recebidos por quem é receptivo, e a creação dessa receptividade depende da minha interna atitude de generosidade e liberalidade, da facilidade com que partilho com meus semelhantes o que tenho e o que sou. Esse dar do próprio Eu, essa espontânea doação da própria pessoa em benefício dos outros é um doar completo, um perdoar¹.

O sentido profundo é este: o ofendido deve desligar-se do ofensor, ignorá-lo, não tomar nota; não deve sentir-se ofendido. Somente é ofendível o homem-ego, ao passo que o homem-Eu é inofendível. O ego ofendível é como água, que é alérgica às impurezas do ambiente e é por ele contaminada. O Eu, porém, é como luz ("vós sois a luz do mundo"), que é absolutamente incontaminável pelo ambiente; não existe luz impura; ela é pura no meio de ambientes impuros. A imunidade da luz é absoluta, ao passo que a imunidade da água é relativa.

Assim, o Eu, que é luz, é inofendível, ao passo que o ego, que ainda é como água, é ofendível. Muitas vezes o ego se sente ofendido; mesmo quando não há ofensor ele inventa pseudo-ofensas. Quem se sente ofendido confessa que se acha no mesmo plano do ofensor; quem não se sente ofendido está num plano acima do ofensor².
A lei de Moisés manda vingar a ofensa - "olho por olho, dente por dente". Certos teólogos mandam perdoar a ofensa. Mas, tanto o vingador quanto o perdoador provam que ainda estão no plano inferior da egoidade, uma vez que somente o ego é ofendível.³

Melhor do que vingar ou perdoar é desligar-se, ultrapassar o horizontal do ego ofendível e subir para a vertical do Eu inofendível."*

É assim que funciona uma consciência elevada, verdadeiramente evoluída no sentido de compreender que não pertence a este mundo, mas está aqui apenas de passagem, para cumprir certos desígnios.

Dar demasia importância às coisas terrenas a ponto de deixar que a vida se torne uma constante busca por realizações terrenas é uma ofensa direta a Deus, que nos criou com consciência, inteligência, capacidade crítica e investigativa; todas as ferramentas possíveis para que investiguemos assuntos e questões da ordem metafísica e espiritual. É nesse ponto que a esmagadora maioria da humanidade sempre se perdeu.

"A evolução humana consiste essencialmente na expansão progressiva da sua consciência, no desdobramento ou alargamento do seu Eu individual rumo à consiência universal; ou seja, na transição da consciência unilateral, egocêntrica, para a consciência onilateral, cosmocêntrica."*


 A não-identificação é a chave para o verdadeiro perdão. E o perdão é o que nos abre as portas para compreender essa verdade essencial sobre dar e receber. Sem estas bases bem estabelecidas é impensável que consigamos entender sequer os fundamentos do amor de Cristo por nós, e consequentemente do nosso diante dos outros. Ninguém pode dar o que nunca recebeu, mas o fato é que já recebemos mais amor do que podemos compreender.





* Trechos do livro A Metafísica do Cristianismo, de Humberto Rohden

¹ Em todas as línguas a palavra "perdoar" é um composto de "dar" ou "doar". Perdonare (de donare, doar), vergeben (de geben, dar), forgive (de give, dar). Os prefixos "per", "ver", e "for" denotam totalidade, plenitude, inteireza.

² Como ilustrado pelo texto: "Os níveis do Ser Humano"

³ Existem práticas na doutrina gnóstica sobre como silenciar o ego, ou mesmo "matá-lo"; embora eu não recomende esse tipo de leitura para pessoas que não possuem uma forte base espiritual prévia.

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