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sábado, 12 de março de 2016

A Perda do Sentido Espiritual da Natureza


'O que se entende hoje do estudo da natureza física? É a ciência que procura estudar da natureza somente os seus aspectos diretamente mensuráveis, matematizáveis. Quer dizer, é uma espécie recorte da natureza onde se pega apenas os seus aspectos quantitativos mais facilmente captáveis e organizáveis num conjunto de relações. Relações que quando se revelam constantes, cíclicas, repetitivas, adquirem o nome de Leis. Lei científica, no contexto da ciência moderna, é uma espécie de equação matemática que se verifica repetidamente estabelecendo uma relação entre fatos da natureza. A ciência hoje em dia é do tipo descritiva-geométrica da natureza e que busca somente as repetições. Ora, o aspecto repetitivo e mensurável de um fenômeno, é evidentemente só uma faixa, um corte, uma fatia por assim dizer. Se você pegar antes do ciclo chamado Ciclo Moderno que começa com a Renascença, você verá que a ciência Física se ocupava de muito mais coisas, como por exemplo o papel do significado das coisas. O significado pressupõe uma intencionalidade. Ora, em todo o ciclo moderno e praticamente toda a cultura universitária atual, se baseia na idéia de que só existe intencionalidade no reino da intencionalidade humana e nada mais. Somente o ser humano possui intenções e portanto que age com um significado. Ao passo que todo o reino da natureza terá que ser explicado independentemente de significados. Ou seja, a ciência não se interessa pelo que a natureza nos comunica. Mas apenas em descrever e medir seu comportamento desde fora. Há um recuo da capacidade de compreensão. Evidente que esta concepção vem diretamente da divisão cartesiana entre a coisa pensante que é a nossa mente e a coisa extensa que é o objeto da natureza. No século XVIII, Leibniz vai mostrar que apenas o aspecto quantitativo, a medida, não basta para constituir o conceito de um ente real; e que portanto o mundo estudado pela física moderna não era propriamente real, mas um esquema matemático que coincide em certos pontos com o mundo real.

'Look, the skies are crying again'

É claro que esta despersonalização da natureza traz como consequência uma excessiva personalização do mundo da fala humana, porque o homem vivendo num universo hostil sem significado, acaba se sentindo mal e as suas necessidades de expressão e comunicação se tornam exacerbadas. Daí que ao mesmo tempo em que a ciência vai descrevendo um mundo cada vez mais impessoal, você vai vendo na prática o processo inverso: um processo de subjetivação cada vez maior. Por ex.: Na época de Shakespeare, no século XVIII (período romântico), as pessoas começam a falar de emoções interiores das mais subjetivas de uma maneira que nunca o homem tinha feito em toda sua existência. E então, nas memórias de Jean Jacques Rousseau você vai ver o indivíduo pegando a sua vidinha, a sua alminha e se desdobrando nos mais íntimos detalhes para todo mundo ver. Isto aí é um reflexo de uma despersonalização da natureza. Então, é um espécie de excesso para compensar um excesso contrário.

A situação urbana moderna é por um lado a expressão de toda essa ciência técnica. E dentro das cidades surge um tipo de cultura que é especificamente subjetivista como compensação. Como as pessoas estão muito oprimidas ali, então elas sentem que têm que exprimir os seus sentimentozinhos para sentir que são gente. Mas é uma expressão muito pobre e que vai corromper o sujeito ainda mais. Qualquer intenção humana que se superpõe à realidade, reflete demência, nada mais. O empregado que tira férias e vai para montanha acredita que está sonhando. E depois quando ele volta para o trabalho, acredita que voltou para a realidade. Mas é justamente ao contrário: as montanhas, o mar são realidades que já estavam aí há milênios. Isso não que dizer que temos que acabar com a civilização, com as máquina; mas que temos que colocar as devidas proporções nas coisas. Os mares, as estrelas, os planetas existem mesmo e nós estamos num mundinho pequenino de civilização colocando as nossas intenções. Mas este não é efetivamente o mundo real. É somente uma forma de adaptação humana a um mundo real que preexiste. A redução matemática que se fez da natureza é um fenômeno criado pelo homem. Quer dizer, é uma espécie de refúgio intelectual no qual o homem, aterrorizado dentro da complexidade da natureza, se esconde dentro de uma versão simplificada que ele mesmo inventou. Isto é uma reação primitiva. Essa simplificação mental que é feita pelo homem para não ver a realidade porque se está como medo dela (em vez de você estabelecer uma espécie de diálogo para tentar entender do que está se passando), não é uma reação do mundo moderno; ela sempre existiu no homem. Tem um historiador de arte que observou: Quanto mais você remonta para trás na historia da arte, as formas de desenho eram mais simplificadas, esquemáticas e geométricas. Porque que o homem primitivo em vez de desenhar o que via, desenhava figuras geométricas? É simples: ele estava no meio de uma confusão natural. Tendo medo daquilo, ele recuava para um mundo inventado, geométrico um mundo matematizável (dentro das possibilidades matemáticas que ele tinha). Quando você chega mais ou menos na época do império greco-romano, começa a ver que se alcançou aí um certo domínio da natureza que permite que o homem olhe de novo para a natureza, sem medo, e comece a gostar dela. Porém se você avançar mais, quando a civilização urbana cresce e tampa a natureza, aí você começa a idealizar a natureza cada vez mais: daí surge o romantismo, idealismo, essas coisas todas. É uma natureza, uma naturalidade inventada. Quando se fala em naturalidade inventada, não é só a visão do universo natural onde você tem a introdução do artificialismo. Mas na própria expressão dos sentimentos humanos. Na época de Jean-Jacques Rousseau onde era moda ser sincero, ele inventa emoções que não tinha, inventava até pecados que ele não cometeu em nome de ser sincero. Isso quer dizer que até no contato consigo mesmo, não só com a natureza exterior mas com a sua própria natureza íntima), o homem substitui o observado pelo inventado. A pesquisa histórica comprovou que muitas das sacanagens que Rousseau atribuía a si mesmo eram mais uma super-pose de sincero. O pessoal descobriu que ele não era tão ruim quanto ele dizia, era inventado mesmo.

Esse coisa de você tentar parecer pior do que é, essa sinceridade posada, é uma típica invenção deste terceiro estágio da civilização, onde a civilização urbana já tampou completamente a natureza. Como você não pode chegar nela, você a inventa. Ora, na mesma medida que você inventa a natureza exterior (como já dizia a divisa alquímica: como é em cima é em baixo) na medida em que você se afastou completamente da natureza sensível e agora tem que inventá-la, você acaba se afastando da  própria natureza interior e tem que inventá-la. Então já não se sabe mais o que se passa dentro de você. Você pode inventar uma fantasia lisonjeira ou deprimente. Mas tanto faz, você pouco sabe a respeito de si: a imaginação está inventado tudo. Se verificar as doutrinas modernas a respeito do inconsciente, existem tantas criações diferentes do inconsciente (Freud, Jung, Reich) que estou seriamente inclinado a acreditar que não tem nenhum santo. Porque ninguém pode observar tudo isto. E pergunto eu: será que um auto conhecimento autêntico seria tão diferente de pessoa para pessoa? Então eu teria um inconsciente freudiano, você teria um inconsciente Reichiano. O inconsciente deve ser mais ou menos igual para todo mundo. Quer dizer, estão tentando pegar a natureza interior do homem desde fora e com uma grade de conceitos mais ou menos inventada: exatamente como da a Física com a Matemática Tem-se que deixar a alma falar. A condição sine qua non para a alma falar é entender que ela não vai falar nada de acordo com a divisão dos conhecimentos que nós inventamos. Quer dizer, a natureza não vai dar hoje para você uma aula de Física, uma aula de química depois uma aula de gramática; ela não vai fazer isso. Então para começar a entender é preciso admitir em primeiro lugar que as nossas divisões universitárias do conhecimento foram inventadas por nós mesmos. E que a natureza é uma só e ela só pode falar de tudo junto. Você é que tem que depois separar e classificar. Mas se você espera que ela fale em qualquer das linguagens que nós concebemos, ela não vai falar. Ela vai ter que ter uma linguagem própria que é prévia, que é anterior, que é mais básica do que todas estas divisões. Mas precisamos entender esta linguagem que é a linguagem simbólica. A Ciência Natural (no tempo que os filósofos ainda eram capazes de interpretar algo da ciência natural) era simultaneamente uma ciência espiritual. E os muitos sentidos dos símbolos remetiam aos diversos aspectos do conhecimento mesmo. A gente só vai entender a Física de Aristóteles se entender isto aqui. A física antiga podia ser ao mesmo tempo uma teologia e uma psicologia transcendental. O que é psicologia transcendental? É a psicologia dos aspectos superiores, cognitivos do homem. Ora, para o nosso conceito atual de ciência física qualquer consideração de ordem teológica ou de psicologia, transcendental é totalmente extemporânea (porque a física só se ocupa de medir relações matematizáveis: ela entende disso como ciência natural). Bom, por um lado tem uma ciência natural por outro lado tem o estudo da natureza que é por um lado a física, a matemática; e por outro lado existe o estudo do homem que é história, sociologia etc... E os aspectos espirituais da própria natureza, onde ficam? Não ficam, não há lugar para eles. Eles não podem ser captados nem pela Física, nem pelas ciências naturais, nem pelas ciência humanas. Porque é algo mais básico do que essa divisão natural e a feita pelo ser humano. Ela é intrinsecamente inseparavelmente natural e humana.

É justamente essa síntese do natural e humano no divino que caracteriza este ciclo pré-moderno. Se você pega a linguagem humana, alguns dos símbolos humanos então é ciência humanas (astrologia história, lingüística etc.) Por outro lado, você tem uma linguagem cósmica (que é a ciência da Física etc.); mas não é bem uma linguagem; é um conjunto de esquemas. Mas quando junta isso aqui? No mundo cartesiano, porque nele a mente e o corpo e a coisa extensa não se juntam. Ora, isso aí é simplesmente uma divisão do saber.

É absurdo que essa divisão do saber coincida exatamente com a divisão da realidade. Porque estas 2 coisas não estão realmente separadas. Aonde está o mundo humano (o mundo histórico, da línguas etc.)? Está dentro do Cosmos e chega ao nosso conhecimento se não através das estruturas dos conceitos, da linguagem que nós mesmos inventamos para captá-la. Esse é o máximo problema do conhecimento do século XX que seria onde se capta a linguagem comum da natureza e do homem? E onde está esta linguagem? Bom, por um lado ela está na imensidão da natureza visível. E acima, está na esfera puramente metafísica. É no plano supra-sensível que nós vamos ter que juntar a linguagem humana e cósmica na linguagem divina. Se existe a ciência da interpretação da linguagem divina, é exatamente destas bases complementares da alquimia que nós estamos falando. Quer dizer que se, de cara, nós abolíssemos da ciência as considerações das chamadas causas finais, as finalidades nós não vamos entender coisa nenhuma. Se nós acreditamos que na ciência física tudo pode ser explicado apenas pela causa eficiente (por aquilo que provocou o acontecimento e não a finalidade pelo que acontece) não vamos entender nada. Ora, o presente número 1 do método científico da Renascença é abolir estas causas finais (abolir a finalidade e estudar somente as causas eficientes). Por outro lado, se existe uma intencionalidade natural, ela não é uma intencionalidade no sentido humano porque senão nós vamos cair de novo no Romantismo (quer dizer, a chuva que cai, vai falar da namorado que ele largou ontem) Ou seja, se a natureza fala e tem intencionalidade, o que ela fala deve ser uma coisa completamente diferente daquilo que se fala no mundo exclusivamente, na sociedade. E o que ela fala também deve ser muito diferente do que captamos na natureza quando observamos de fora como mero tecido de relações matematizáveis. Para complicar mais a coisa, aconteceu que este estudos alquímicos, metafísicos etc.. bem como as tradições que ser tornaram portadoras deste conhecimento, se tornaram objeto de interesse das ciências humanas. Então hoje existem estudos históricos, antropológicos, sobre alquimia e ritos que tentam encarar todos estes conhecimentos apenas sob o ponto de vista da linguagem humana. Aí é que a confusão chegou no seu máximo. Estudos sobre o esoterismo seriam na verdade uma esoterologia (na verdade seria um estudo sobre o que certas culturas falaram sobre os conhecimentos esotéricos; os quais nunca são enfocados como tais, mas apenas no seu reflexo cultural) Por ex.. agente pode explicar que tal cultura acreditava em duendes. A antropologia pode verificar isso aí. Agora a antropologia não pode verificar se o duende existe ou não. Agora, se eu não sei de uma determinada crença reflete algo da realidade objetiva ou não, como é que eu vou entender esta crença? Por ex.: você acredita que você assistiu esta aula porque você esteve aqui. Agora, amanhã ou depois o sujeito vai estudar sua psique e vai querer os fundamentos da sua crença nesta aula sem levar em conta que a aula realmente aconteceu.

Outro exemplo: na América não havia cavalos (os espanhóis que trouxeram). Daí depois que os índios viram cavalos eles passaram a acreditar em cavalos. Agora explique a crença dos índios em cavalos sem levar em conta que os espanhóis trouxeram cavalos para a América. Aí você podia dizer na cultura indígena existia alguns símbolos que explicavam a crença neste tipo de seres. E você vai ter que achar uma explicação antropológica para aquele negócio; Mas não tem explicação antropológica para isso; não tem explicação antropológica alguma! O sujeito acredita em cavalo porque ele viu cavalo. Por outro lado uma cultura também pode implicar a crença em coisas que não existem, algumas maluquices de fato? Só que antropologicamente nós não temos como distinguir as duas. Quer dizer que uma crença sensata ou uma crença insensata, antropologicamente valem a mesma coisa. Então uma vez que se perde a capacidade de apreender o sentido espiritual da natureza e cai no cartesianismo dualista, não se tem mais condição de distinguir se uma cultura está todinha louca ou se ela está instalada na realidade.'

Olavo de Carvalho



"O Lórien! The Winter comes, the bare and leafless Day;
The leaves are falling in the stream, the River flows away.
O Lórien! Too long I have dwelt upon this Hither Shore
And in a fading crown have twined the golden elanor."
  


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