"Olhando fixamente para dentro de seu coração,
um homem "lê" o que está inscrito na sua consciência íntima,
como palavras de um texto supremamente auto-evidente.
Ao subir para a periferia da mente - onde estão depositadas,
como redes superpostas, a gramática do idioma pátrio,
as regras de estilo, os usos do vocabulário e as exigências da moda,
as palavras do discurso íntimo se embaralham,
entrando por automatismo nesses canais e arranjos pré-moldados
que as desfiguram e as afastam infinitamente do significado originário.
Então é preciso mergulhar de novo e de novo, até que a imagem do
discurso interior fique tão nítida na memória, que as formas da
linguagem externa se amoldem a ela como meras vestimentas,
sem deformá-la ou incomodá-la."¹
A mentira se tornou uma prática tão natural ao longo da história humana que pouco esforço é feito no sentido de traçar a real extensão de suas consequências, tornando-a uma alternativa aceitável para livrar seu criador de alguma situação difícil, constrangedora, ou mesmo para facilitar sua vida como uma incrivelmente útil e versátil ferramenta do dia a dia.
Basta voltar um pouco para notar que o próprio pecado original nasceu de uma mentira, inventada para concretizar um plano maligno fruto de um pecado capital (inveja). E dessa mentira se originaram infindáveis outras. O ponto é que nem sempre quem mente tem consciência da mentira que conta. Como descrito na citação inicial, toda informação que processamos passa necessariamente por vários filtros mentais até que se aloje em nossa consciência para ser futuramente utilizada na construção de um pensamento ou fala.
E todo esse processo nos leva a uma pergunta: qual será o estado de limpeza de nossos filtros?
Vamos lá: A mente humana funciona de maneira sistêmica/orgânica. Sendo que quando alguém nega uma verdade fundamental (consciente ou inconscientemente), sua mente é automaticamente privada de uma série de outras verdades que derivam dessa primeira. Esse processo pode se dar primeiro em pequenas mentiras, mas a repetição diária de mentiras pequenas abre precedente para a aceitação de mentiras maiores. E cada um desses processos molda independentemente o caráter, a sensibilidade espiritual, a capacidade de auto-conhecimento e auto-reflexão da pessoa, que vai aos poucos se tornando uma mentira ambulante. A própria essência desse ser se tornou doente de tal maneira, que todas as suas bases e mecanismos de funcionamento estão contaminadas por mentiras. E é assim que uma pessoa entra em estado de neurose.²
Portanto a neurose é o preço da negação da verdade. E para evitar esse quadro, deve-se primeiro admitir a verdade sobre si mesmo. É absolutamente impensável que alguém que desconhece a si mesmo seja capaz de conhecer a verdade sobre as outras pessoas, sobre o mundo, ou sobre qualquer outro aspecto. Uma pessoa que não realiza constantemente uma análise de suas atitudes, é absolutamente honesta e franca consigo mesmo quando a suas falhas, tem seus padrões morais paulatinamente alterados de maneira inconsciente. Uma pessoa que procura ter os olhos focados, a alma limpa e o espírito puro deve necessariamente estar disposta a se voltar constantemente para Deus com honestidade e expõr todas as mentiras que foram ditas, pensadas, em que fingiu acreditar, as más intenções que teve, etc... Ainda que voltemos a praticar essas condutas algum tempo depois (pois isso é inevitável segundo a própria natureza pecaminosa humana), o importante é que essa prontidão em reconhecer os próprios erros e defeitos esteja sempre sendo exercida.
O que não faltam na Bíblia são exemplos de homens que cometeram pecados mortais e ainda assim foram considerados exemplares aos olhos de Deus. Isso se deve não à gravidade do pecado que cometeram, mas pela disposição e sinceridade constantes que os faziam retornar sempre ao Criador, buscando compreensão, sabedoria e superação.
A ideia é que não importa a quantidade de erros que cometemos, mas a inclinação sucessiva que temos em nosso coração para nos abrirmos em total humildade e sinceridade perante a Deus e à nós mesmos. Essa é a base da própria sanidade. Entender que nossas ideias, pensamentos, desejos ou mesmo sonhos, não são o centro do mundo. É ser capaz de parar de olhar para o próprio umbigo e começar a buscar conhecimento da realidade e da verdade que estão adiante. Temos a própria definição da técnica psicanalítica no sentido clássico dentro desse contexto; que consiste na anamnese - lembrar a realidade dos fatos e se desfazer das racionalizações com as quais você a encobriu (processo descrito na citação inicial).
Em suma: o egocentrismo é o resíduo subjetivo que escraviza a mente humana e a torna incapaz de se situar dentro da realidade; ao passo que a sinceridade é a base para a sanidade.
E esse é o momento em que cada um deve submeter tudo ao que foi dito aqui com os traços culturais mais marcantes de nosso tempo: busca por satisfação pessoal, realização de vontades e prazeres egoístas... vidas inteiras baseadas nesse contexto. Creio que poucos instantes bastam para que se conclua que vivemos num sistema extremamente nocivo em relação a valores, comportamentos mundialmente disseminados e aceitos; como se caminhássemos numa densa nuvem tóxica tendo que moldar nossa máscara de proteção (que paradoxalmente consiste em eliminar de si qualquer máscara que tenhamos construído ao longo da vida) dia após dia.
"Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, desperta."
Carl Jung
Carl Jung
...
O que usa de fraude não habitará em minha casa; o que profere mentiras não estará firme perante os meus olhos.
Salmos 101:7
Os lábios mentirosos são abomináveis ao Senhor; mas os que praticam a verdade são o seu deleite.
Provérbios 12:22
Pelo que deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo, pois somos membros uns dos outros.
Efésios 4:25
Não mintais uns aos outros, pois que já vos despistes do homem velho com os seus feitos, e vos vestistes do novo, que se renova para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou;
Colossenses 3:9-10
Mas, se tendes amargo ciúme e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade.
Tiago 3:14
Ficarão de fora os cães, os feiticeiros, os adúlteros, os homicidas, os idólatras, e todo o que ama e pratica a mentira.
Apocalipse 22:15
¹: Nota introdutória do ensaio de dialética erística de Arthur Schopenhauer escrita por Olavo de Carvalho - ed. Topbooks (1997)
²: Segundo o psicólogo Juan Alfredo César Müller, neurose é nada mais que uma mentira esquecida na qual ainda se acredita.
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